sexta-feira, 8 de maio de 2009

O QUEBRA-QUEBRA DE 1959

OLIVEIRA, Selmane Felipe de. O Quebra-quebra de 1959. Cadernos de História,
Uberlândia, 4 (4): 89-97, jan./dez. 1993.

(*) Publicado também na internet: http://www.geocities.com/ceturho/oliveira1.htm

A imagem normalmente associada ao governo de Juscelino Kubitschek é a de industrialização e desenvolvimento econômico. Aliás, de acordo com a análise de Maria Victoria M. Benevides, não há como negar esse desenvolvimento. O problema, para ela, é a questão da estabilidade política. Daí a sua hipótese (confirmada no final do trabalho): "a estabilidade política do Governo Kubitscheck foi fruto de uma conjuntura favorável, na qual as Forças Armadas (notadamente o Exército) e o Congresso (aliança majoritária PSD/PTB) atuaram de maneira convergente no sentido de apoiar a política econômica, cujo núcleo era o Programa de Metas."58 A hipótese de Maria Victoria M. Benevides "parte do pressuposto de que o Governo Kubitschek foi efetivamente estável. No entanto, não se pretende negar a instabilidade do contexto histórico mais amplo."59 Em outras palavras, apesar do grande desenvolvimento econômico, da estabilidade política, ocorreram crises, conflitos e manifestações contra o governo. Entre essas manifestações estava o quebra-quebra, fenômeno onde a população, de forma organizada ou não, se voltava contra a ordem, o status quo, atacando, saqueando, e destruindo lojas comerciais, prédios públicos, cinemas, etc. Esse fenômeno aconteceu em Uberlândia e 1959. Aliás, no mesmo ano já havia ocorrido quebra-quebra em São Paulo, Belo Horizonte, Fortaleza e em Santa Catarina,60 de modo que o episódio de Uberlândia não foi um acontecimento exclusivo. Entretanto, o que chocou a opinião pública da época - a cidade foi manchete nos principais jornais e revistas do país61 -, foi que, ao contrário das capitais, Uberlândia era vista como um município tranqüilo e ordeiro.
As manifestações de quebra-quebra aconteciam como protesto contra o aumento do custo de vida. No caso de Uberlândia, o estopim foi o aumento do preço dos cinemas, onde a entrada passou de 18 para 30 cruzeiros. O povo protestou. Primeiro, através de "fila-bôba", aglomerando-se nas portas dos cinemas, e depois, de forma violenta, invadindo, depredando e incendiando:

"O material arrancado aos cinemas era trazido para a rua entre gritos e incendiado sobre o asfalto. Perigosas fogueiras erguiam chamas para o alto, enquanto a multidão bradava. Inúteis foram os pedidos de calma. Inúteis todas as intervenções. U’a multidão enfurecida (não se sabe por que) destruía tudo. Uberlândia ficou sem os quatros cinemas."62

A fúria da multidão era contra o aumento do preço dos cinemas - um dos principais meios de lazer da época -, o que representava também o aumento do custo de vida. O quebra-quebra começou de forma espontânea, ninguém esperava, e não foi organizado por partidos ou grupos de esquerda. Neste momento, era o povo nas ruas, espontaneamente, protestando e destruindo. Após a destruição dos cinemas no domingo (18?01/1959), veio a expectativa do que poderia acontecer no dia seguinte. Chegou reforço policial da cidade de Uberaba. Rumores alertavam que o quebra-quebra continuaria no mercado central da cidade, local para onde foi quase todo o contingente policial. Entretanto lá havia apenas mulheres e crianças, que tentavam chamar a atenção dos policiais, enquanto, em outro local, na Av. João Pessoa, ocorria efetivamente o quebra-quebra:

"(. . . ) outro grupo assaltava a máquina de arroz Messias Pedreiro. Assaltava com extrema violência, saqueando tudo, roubando, incendiando, destruindo. A polícia não pôde agir, pois guardava o mercado. Houve estratégia nessa ‘manobra’ dos vândalos. As cenas que a reportagem do CORREIO DE UBERLÂNDIA assistiu são indescritíveis. O vandalismo supera qualquer destruição, por mais realista que seja"63

Os saques continuaram. Depois do Messias Pedreiro foi a vez da Casa Caparelli, onde a multidão atacou, "levando armas, (. . . ) bicicletas, utensílios domésticos, máquinas de costura e todo o estoque daquela grande firma atacadista."64
Após esses saques, chegou o reforço policial de Belo Horizonte e a violência continuou, mas neste momento, contra os manifestantes e os saqueadores: quatro pessoas foram mortas, 12 feridas e 200 presas. Além disto, uma parte da mercadoria saqueada do Messias Pedreiro e da Casa Caparelli foi "arrecadada" pela polícia.65 O quebra-quebra durou exatos dois dias - 18 e 19 de janeiro de 1959, mas gerou expectativa e tensão na cidade por algum tempo. A Associação Comercial, por exemplo, ficou em assembléia permanente por nove dias (19 a 27/01/1959). Isto sem falar que o "quebra-quebra" de 1959 serviu como exemplo da capacidade de protesto da multidão e é sempre lembrado, em épocas de crises, como um pesadelo a ser evitado."66 Muitas análises foram feitas sobre o quebra-quebra. A imprensa local67 condenava o tumulto e os saques, mas, ao mesmo tempo, também criticava o governo e alta do custo de vida. A UESU (União dos Estudantes Secundários de Uberlândia) veio a público esclarecer o seu envolvimento no quebra-quebra, dizendo que, apesar de ter organizado a "fila-bôba" na porta do cinema, "jamais foi intenção daqueles colegas promover qualquer manifestação semelhante ao ‘quebra-quebra’ que se originou",68 ressaltando ainda que o número de estudantes nas violentas manifestações era insignificante. Na revista Elite Magazine, o professor Nelson Cupertino tentava minimizar as manifestações, colocando a culpa na imprensa, que era sensacionalista:
"Assim, em relação aos acontecimentos mais recentes: um simples ‘quebra-quebra’, brutal manifestação do desorientamento coletivo, torpemente explorado por interesses escusos, vem sensacionalmente sendo exibido na T.V. e nas publicações ilustradas, como prova inconcussa da selvageria vigente nesta nossa terra! Puro sensacionalismo! Unicamente o propósito de ampliar tiragens forçando a procura, mediante excitações da curiosidade! Porém, eliminados esses condimentos de psicologia barata, só restam em campo aqueles genuínos elementos que, submetidos a uma análise definitiva, irão reduzir-se aos termos da misérias econômica ou moral que proveram tão triste façanha.69

Na Câmara Municipal, o vereador Homero Santos sugeriu o envio de "um ofício ao Secretário de Segurança do Estado elogiando as atuações do Sr. Delegado Tenente Coronel Josino Ramalçho Pinto e ao Tenente Eustáquio Murilo da Silva"70 na repressão ao quebra-quebra de janeiro de 1959. Essa sugestão foi muito discutida, e não foi aprovada pela Câmara Municipal, porque, entre outras coisas, como disse o vereador Lázaro Chaves, no caso do Tenente Eustáquio Murilo, não fazia sentido tal elogio, na medida em que "ele usou e abusou da força em Uberlândia, espancando populares e agindo de maneira parcial."71 O prefeito da cidade também tinha a sua própria análise sobre o quebra-quebra, só que na sua opinião, o responsável por esses acontecimentos era o Estado de Minas Gerais, que não destinava recursos financeiros ao município para construção de delegacias especializadas ou mesmo de escolas, pois em suas palavras, "sem instrução e sem conhecimentos culturais e morais, que só a Escola transmite, uma população ignorante se acha a um passo do crime, do vandalismo, do saque e da barbárie."72 Examinemos, por último, a postura e a atuação da Associação Comercial. Em primeiro lugar, como foi dito antes, ela ficou em assembléia permanente por nove dias. Os empresários ficaram assustados. A principal preocupação da associação era conseguir reforço policial, para tanto, foram dados vários telefonemas, sobretudo para autoridades, estaduais e federais, ligadas ao serviço de segurança pública. A Associação Comercial também solidarizou-se com os comerciantes saqueados - Messias Pedreiro e Francisco Caparelli -, enviando ofícios e uma comissão para expressar os seus sentimentos. O 1o. vice presidente desta entidade, Helvio Cardoso, "propôs ainda que se desse publicidade as providencias tomadas pela Associação e a confiança que deposita nas autoridades policiais, as quais se comprometeram a manter a ordem na cidade."73

Renato Humberto Calcagno, ex-presidente da Associação Comercial, em entrevista ao jornal Correio de Uberlândia, expressou de forma clara a visão dos empresários sobre o quebra-quebra.

"Com desolação e com pesar refletiram em nosso ânimo os reprováveis acontecimentos. Uberlândia e o seu povo não mereciam uma tão infeliz propaganda. Os responsáveis devem existir, deram prova de desprezo e de falta de amor a esta cidade acolhedora e pródiga. Outra é a civilização do uberlandense, tão afeito ao trabalho, ao progresso, ao respeito com o próximo. Isso tudo, largamente divulgado e comentado em todo país, mais ainda nos entristeceu. (...) Esta página negra deve ser virada em definitivo. Que todos se unam para o bem; que as autoridades se compenetrem no seu dever para com todos; que o povo reflita, respeite o seu semelhante e ame a terra em que vive; (. . . ) enfim, que todos concorram para a concórdia, para a tranqüilidade e para a grandeza desta generosa terra. Só assim Uberlândia continuará a sua marcha vitoriosa e se afirmará como uma das maiores cidades do interior brasileiro, como já é. A violência, a agitação e a discórdia não constróem e não aproveitam a ninguém, senão aos mal intencionados. Ajudemos Uberlândia, como Uberlândia nos ajuda!"74

Assim, mais uma vez a análise burguesa baseou-se na temática da ordem e do progresso, ressaltando ainda a questão do trabalho e "o amor a terra em que vive". A preocupação com a imagem da cidade foi outro ponto fundamental - "Uberlândia e seu povo não mereciam uma tão infeliz propaganda" -, pois a burguesia local sempre lutou para manter a visão do município enquanto espaço harmonioso e sem conflitos sociais. Essa ideologia servia tanto internamente - para desestimular as greves, as organizações populares, de classes, em nome do interesse da "cidade", do "bem comum" - como externamente - para atrair empresas e benfeitorias para o município, na medida em que se tratava de um povo ordeiro e trabalhador.
Entretanto, o quebra-quebra de 1959 mostrou o oposta da imagem burguesa da cidade: foi a desordem, a revolta, a destruição e os saques. A própria esquerda uberlandense ficou sem ação diante da revolta popular. A cidade que era vista como "foco de comunistas", não teve o PCB ou qualquer outro partido na vanguarda das manifestações. Ao contrário, a UESU, entidade estudantil, em nota oficial, veio negar a sua participação no quebra-quebra, dizendo ainda que o número de estudantes nestes acontecimentos era "insignificante". Para entender a postura da esquerda em Uberlândia, seria interessante recorrer ao trabalho de Jane de Fátima S. Rodrigues, que analisando a participação do P.C.B. e a trajetória da classe trabalhadora na cidade, concluiu o seguinte:

"(. . . ) sobre a questão partidária, é válido afirmar que os partidos políticos locais contribuíram, em muito, para viabilizar o projeto da ordem e do progresso. Acreditamos que, embora a posição do P.C.B. não se rivalizasse com o dos demais partidos no que dizia respeito ao projeto da ordem e do progresso, os constantes choques armados com a polícia, prisões e espancamentos serviram para conformar a classe trabalhadora uberlandense dentro dos limites do quadro político partidário imposto ao país. (. . . ) A convergência para o projeto de cidade, e não de classe, sugeriu, muitas vezes, tanto à classe patronal como ao operariado, que algumas de suas propostas fossem obstadas."75

Portanto, podemos dizer que, além da repressão policial, outro fator fundamental para enquadrar a esquerda uberlandense no processo de "ordem e progresso", foi justamente "a convergência para o projeto da cidade, e não de classe. "Talvez isso explique a omissão dos partidos políticos e das organizações de esquerda no quebra-quebra de 1959. Porém, se de um lado houve omissão, de outro, o "remédio" encontrado para as manifestações populares foi a repressão policial. Essa foi a postura da burguesia local, representada pela Associação Comercial. Os reforços policiais vieram de Uberaba e de Belo Horizonte. "Uberlândia transformou-se em autêntica praça de guerra. Fortemente policiada, perigosamente em polvorosa, suas ruas eram percorridas por viaturas de policiais que disparavam suas armas para dispersar grupos."76
A ação violenta da polícia contou com o apoio da burguesia, de políticos e até da imprensa, que via os manifestantes como uma "multidão de vândalos que não protestava contra nada. Apenas extravasava instintos e dava vazão a vontade de apropriar-se do alheio."77 Em outras palavras, "os vândalos" tomavam a força o que não lhes pertencia: o povo apropriando-se do que é da burguesia. A reação burguesa - ferida em dois dos seus principais valores: a ordem e propriedade - veio com a fúria e a violência dos policiais, que deixaram como "saldo" s quatro mortos e muitos feridos. Em resumo, o quebra-quebra de 1959 mostrou o avesso da ideologia burguesa: a resistência popular, demonstrada através dos protestos e dos saques. Tratou-se também de um movimento sem uma vanguarda enquanto partido ou grupo político. O povo nas ruas, protestando, destruindo, saqueando, surpreendendo as organizações burguesas e mesmo os militantes de esquerda. Enfim, uma ação popular sem controle, que teve como resposta, uma reação violente e organizada, arquitetada pela burguesia e realizada pelas tropas policiais.