sexta-feira, 8 de maio de 2009

COMEMORAÇÕES NACIONAIS O CASO DAS DATAS CÍVICAS

OLIVEIRA, Selmane Felipe de. Comemorações nacionais: o caso das datas cívicas. In.: Minas Gerais na Ditadura Militar: Lideranças e práticas políticas (1971-983). Tese de Doutrado. São Paulo, PUC, 1999, p. 112-129.

Publicado também no livro "Minas Gerais na Ditadura Militar" (Rápida Editora) e na internet no site: http://www.geocities.com/ceturho/oliveira8.htm

Quando se tratava do passado, nem sempre a postura das lideranças mineiras da década de 70 - Rondon Pacheco, Aureliano Chaves e Francelino Pereira - era de crítica e oposição. A reverência às datas cívicas reforçava esta premissa. Neste sentido, o discurso das lideranças mais uma vez estava de acordo com o regime militar, pois nesta época se insistia em temáticas nacionalistas e no culto aos símbolos nacionais, por isso, aliás, ocorreu a criação de disciplinas nas escolas como Moral e Cívica e OSPB.

As comemorações das datas cívicas eram utilizadas para confirmar o passado (ou a construção de um passado...). Tratava-se de inventar tradições. Esta expressão foi utilizada por Eric Hobsbawm. De acordo com este autor:

"Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado."

Esta preocupação com o passado está associada ao próprio exercício do poder.
Ou seja, de acordo com Baczko, "o poder deve apoderar-se do controle dos meios que formam e guiam a imaginação coletiva. A fim de impregnar as mentalidades com novos valores e fortalecer a sua legitimidade, o poder tem designadamente de institucionalizar um simbolismo e um ritual novos."

Neste sentido, uma das datas cívicas mais comemoradas foi o 21 de Abril - Tiradentes -, por se tratar de um mito mineiro que tinha projeção nacional. José Murilo de Carvalho mostrou em seu livro A Formação das Almas como foi o processo de construção de imagens deste mito a partir da Proclamação da República, "cuja finalidade era atingir o imaginário popular para recriá-lo dentro dos valores republicanos."

Importantes fatores levaram a escolha de Tiradentes como um dos símbolos da República. Primeiro, tratava-se da questão geográfica. Ou seja, "Tiradentes era o herói de uma área que, a partir da metade do século XIX, já podia ser considerada o centro político do país - Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, as três capitanias que ele buscou, num primeiro momento, tornar independentes." Mais do que isso, a associação de um mito cívico - afinal, tratava-se de um patriota que lutava pela independência da nação - com o apelo religioso garantia a imagem de Tiradentes uma aceitação popular. Aliás, a imagem das pinturas que procuravam representá-lo como Cristo estava baseada em alguns elementos:

"O fato de não ter a conjuração passado à ação concreta poupo-lhe ter derramado sangue, ter exercido violência contra outras pessoas, ter criado inimigos. A violência revolucionária permaneceu potencial. (...) A violência real pertenceu aos adversários. Foi vítima não só do governo português e de seus representantes, mas até mesmo de seus amigos. Vítima da traição de Joaquim Silvério, amigo pessoal, o novo Judas. E vítima dos outros companheiros da conspiração, que, como novos Pedros, se acovardaram, procuram lançar sobre ele toda a culpa. Culpa que ele assumiu de boa vontade. (...) Explicitamente, como Cristo, a quem quis imitar na nudez e no perdão ao carrasco, incorporou as culpas, as dores e os sonhos dos companheiros e dos compatriotas."

A partir destes termos - revolucionário, culpa, vítima, perdão - poderia se construir um mito que servisse para a integração da nação, mas que representava também libertação. Em outras palavras, "a tentativa de transformar Tiradentes em herói nacional, adequado a todos os gostos, não eliminou totalmente a ambigüidade do símbolo. O governo republicano tentou dele se apropriar, declarando o 21 de abril feriado nacional e, em 1926, construindo a estátua em frente ao prédio da Câmara. Os governos militares recentes foram mais longe. Lei de 1965 declarou Tiradentes patrono cívico da nação brasileira e mandou colocar retratos seus em todas as repartições públicas. Durante o Estado Novo, foram representadas peças de teatro, com apoio oficial, exaltando a figura do herói. (...) Mas a esquerda também dele não abriu mão, desde os jacobinos até os movimentos guerrilheiros da década de 70, um dos quais adotou seu nome."
Em suma, apesar da figura de Tiradentes ser ambígua, e portanto ser utilizada de diferentes maneiras, seja pela direita ou pela esquerda, foram os governos e as elites que mais se preocuparam em reafirmá-la enquanto símbolo da nação brasileira, pois havia uma preocupação em controlar e usar os chamados símbolos nacionais. Em outras palavras, utilizando uma citação de Bronislaw Baczko, podemos perceber a origem dos símbolos em uma comunidade e a atuação das elites:

"O nascimento e difusão dos signos imaginados e dos ritos coletivos traduzem a necessidade de encontrar uma linguagem e um modo de expressão que correspondam a uma comunidade de imaginação social, garantindo às massas, que procuram reconhecer-se e afirmar-se nas suas ações, um modo de comunicação. Por outro lado, contudo, esse simbolismo e esse ritual fornecem um cenário e um suporte para os poderes que sucessivamente se instalam, tentando estabilizar-se. Com efeito, é significativo que as elites políticas se dêem rapidamente conta do fato de o dispositivo simbólico ser um instrumento eficaz para influenciar e orientar a sensibilidade coletiva, em suma, para impressionar e eventualmente manipular as multidões."

Neste sentido, entende-se porque a ditadura militar deu especial atenção a confirmação do mito de Tiradentes. Aliás, os governos mineiros tiveram uma contribuição importante neste aspecto. Para o governador Rondon Pacheco, "o legado cívico deixado pelos inconfidentes - a unidade e a grandeza de um Brasil livre e soberano - não ficou perdido. Hoje, sob outra forma, reúne os mineiros na construção dos objetivos nacionais permanentes."
Este governo, através dos editoriais do Minas Gerais, procurava fazer uma associação entre o 21 de Abril, o 7 de Setembro (Semana da Pátria) e o 31 de Março (movimento de 64): "A conquista da Independência não deve ser restrita a uma data, pois resultou de um processo que se desenvolveu durante vários anos, em diferentes áreas e sob diversas motivações de comportamento. Muitos foram os agentes e os seus instrumentos de conquista. Marcam, porém, o episódio - além do sacrifício de Tiradentes - a data de 7 de Setembro e a figura insólita de Pedro I. E dentro desse espírito, mostrar que ontem, como hoje e amanhã, o Brasil é um só e unido País, desde as inspirações sonhadoras dos Inconfidentes ou dos heróis da Independência, até os salvadores da República, que em março de 1964 impediram a comunização do País e já agora estruturam a definitiva emancipação econômica de nosso povo."
Tanto a fala de Rondon Pacheco como o editorial do Minas Gerais reforçavam a idéia de Tiradentes como o salvador da pátria. A sua figura era muito utilizada nos discursos dos políticos do Estado, por que, na visão deles, tratava-se de um herói nacional que era mineiro. Nesta perspectiva, isto daria autoridade para Minas falar em nome do Brasil. No editorial do Minas Gerais, havia ainda uma associação importante entre três datas: 21 de abril, 7 de setembro e 31 de março. Elas simbolizariam a independência do Brasil. O uso de termos como sonhadores, heróis e salvadores servia para reforçar esta construção de mitos. Relacionar o 31 de março com as outras datas era uma tentativa de colocar o movimento de 64 neste patamar.
O governo Aureliano Chaves reforçava estas associações, acrescentando outro símbolo - a Açominas - que, no seu entender, significava a "liberação econômica". De acordo com o seu discurso:

"E é nessa atualidade que se confundem os ideais de Tiradentes com os da Revolução de Março, também esta procurando libertar o País e assegurar o progresso material para o povo. Coincidentemente, foi de Minas que partiu o brado de emancipação, tanto em 1789, como em 1964, quando novamente o nosso Estado liderou o movimento de luta nacionalista contra a infiltração ostensiva de ideologias estranhas a nossa formação. E já agora, quando se busca a reafirmação de propósitos de independência econômica de Estado, de novo surge a lembrança dos inconfidentes, não só na identidade desses propósitos, como até mesmo nas sugestões geográficas, tanto se aproximam a histórica Vila Rica do passado e Ouro Branco da futura implantação da AÇOMINAS - Símbolo maior de nossa liberação econômica."

Aureliano Chaves enfatizava, portanto, que tudo começou em Minas - tanto em 1789, como em 1964. Mais uma vez Minas era colocada como libertadora, como liderança. Mas se Minas foi capaz de libertar o Brasil, ela teria que cuidar de sua independência econômica. Neste ponto, tentava-se elaborar um novo mito, a Açominas, que era colocada pelo governador mineiro como símbolo maior de nossa liberação econômica. O termo símbolo não era usado ao acaso. As datas cívicas, na verdade, eram marcos políticos, econômicos, criados para representar (simbolizar) uma suposta unidade nacional. Para serem aceitos, estes marcos eram associados às figuras dos heróis (outra construção). Sobre estas temáticas, José Murilo de Carvalho fez algumas considerações interessantes:

"A República brasileira, à diferença do modelo francês, e também do modelo americano, não possuía suficiente densidade popular para refazer o imaginário nacional.
(...) Só quando se voltou para tradições culturais mais profundas, às vezes alheias à sua imagem, é que conseguiu algum êxito no esforço de se popularizar. Foi quando apelou à Independência e à religião, no caso de Tiradentes; aos símbolos nacionais, no caso da bandeira; à tradição cívica, no caso do hino."

Como vimos, a aceitação do mito de Tiradentes estava associada também à questão da religião, ou seja, de acordo com José Murilo de Carvalho, o "apelo à tradição cristã do povo (...) facilitava a transmissão da imagem de um Cristo cívico." Relacionada a esta imagem, estaria a própria idéia de sacrifício. Aureliano Chaves, em um dos seus discursos, abordou este tema:

"Tiradentes é um símbolo, sem deixar de ser uma realidade. Símbolo, quando se deixa sacrificar pela sua terra, realidade, quando nos transfere a inesquecível proclamação que constitui, a um tempo, aviso e convite: ‘Se todos quiséssemos, poderíamos fazer do Brasil uma grande Nação’. Ora, de Minas, que se orgulha de ser uma síntese do Brasil, partiram sempre os movimentos generosos de recomposição do bem comum, especialmente quando ameaçado."

Quando Aureliano Chaves se referia a Tiradentes como uma realidade, ele estava querendo mostrar que o símbolo só teria utilidade se ele fosse aplicado naquele momento. Nesta perspectiva, a busca do passado teria sentido para justificar o presente e garantir o futuro. Aureliano Chaves reivindica para Minas este papel, e por isso a coloca como a síntese do Brasil. Os termos, de um lado, sacrifício e ameaça, e de outro, orgulho, generosidade e proclamação, serviam para dar um caráter de grandiosidade à trajetória dos mineiros.

Francelino Pereira reafirmava estes discursos. As datas cívicas continuavam a ser referências importantes no seu governo. Em relação ao 21 de Abril, ele afirmou : "A Nação brasileira, com os olhos voltados para Minas, contempla hoje seu passado. Não apenas para comemorar o heroísmo de um grupo de homens, mas para refletir sobre o seu projeto histórico, que é a criação de todo um povo. O cenário desta praça nos convida à meditação, o exemplo dos Inconfidentes liberta a nossa imaginação. A presença do povo nos estimula e nos conforta. Meditemos, pois, sobre as lições do passado e sobre as graves opções do presente. E nenhum momento poderia ser mais oportuno do que este."

Nesta perspectiva, na medida em que Minas representava o passado, ela poderia se colocar como elo de ligação deste com o presente e o futuro. A nação olhava para Minas para ver o seu passado, identificado com heroísmo, liberdade. Este era , de acordo com o governador mineiro, o sentido daquela comemoração, feita em um lugar público - a praça - com a presença do povo. Este lugar não era escolhido por acaso. De acordo com Baczko, a "praça, uma vez vazia, tornou-se um lugar privilegiado do espaço projetado sobre a cidade real. Integrando-se no ritual das festas revolucionárias e símbolo do começo, ainda hoje ela é de preferência escolhida como ponto de formação e partida dos cortejos festivos que atravessam a cidade."

A referência de Francelino Pereira à praça era importante para legitimar o regime, pois se passava a idéia de que a política estava no seu lugar - no espaço público - e não era feita somente em gabinetes e nos quartéis. Neste momento o povo conduz para a idéia de nação, só neste sentido há uma identificação de praça e povo, o que seria diferente, do ponto de vista dos militares, quando o povo ocupou as ruas na campanha das Diretas Já para reivindicar eleições diretas para a presidência da República (estas manifestações eram percebidas, na visão do regime, como um risco para a ordem, como uma questão de segurança nacional, daí a tentativa - frustrada - de associá-las à infiltração comunista).

Neste ponto de vista, os políticos e militares eram mostrados como líderes da nação. Portanto, havia a necessidade de se exaltar também o 31 de março, como podemos perceber em outro discurso de Francelino Pereira:

"Vale recordar que a Revolução teve por fundamento, basicamente, resgatar o Brasil de um Estado de pré-insolvência econômica e de grave crise social e política, para, em seguida, reorientar a organização nacional em termos de modernização, em todos os seus aspectos - econômico, social, político, tecnológico e tudo mais.
(...) O desenvolvimento econômico aí está, à vista de todos. Somos, hoje, 15 anos depois da Revolução, a nona economia ocidental, com o Produto Interno um pouco além de 160 bilhões de dólares; renda ‘per-capta’ superior a 1.600 dólares, que se contrasta a uma situação anterior, caracterizada por intoleráveis distorções econômicas, sociais e políticas."

Este discurso foi feito em abril de 1979, antes do agravamento da crise econômica e sobretudo dos conflitos sociais (características que marcariam o seu governo em Minas Gerais). Comemorar a revolução como sucesso econômico tornou-se prática comum dos políticos depois da fase do "Milagre Brasileiro". Isso mudaria no início da década de 80, quando já não daria mais para disfarçar o descontrole inflacionário e o problema da dívida externa.

Os representantes da Assembléia Legislativa do Estado também participavam das comemorações das datas cívicas. O seu presidente, o deputado João Ferraz, em relação ao aniversário da revolução, afirmou:

"O simbolismo desta solenidade, honrada com a presença dos dignos representantes dos Poderes Executivo e Judiciário, das Forças Armadas e de altas autoridades, destaca a união de todos em torno do general Geisel.
Aqui, não há Governo e Oposição, ARENA e MDB, porque somos, antes de tudo, a própria expressão do povo mineiro.
Minas não divide; Minas quer unir.
Minas não reivindica; Minas quer ajudar.
Foi assim na arrancada gloriosa de 31 de março de 1964.
Será Assim hoje e sempre."

No discurso do presidente da Assembléia, Minas aparecia unida e benevolente. Por isso, ela teria tido um papel de destaque no movimento de 64. Ele chegava a dizer que Minas não reivindica, contrariando o próprio discurso dos políticos mineiros, que procuravam se mostrar como grandes negociadores. Chamava a atenção ainda a referência à oposição, tentando mostrar que em Minas os interesses do Estado estavam acima da questão partidária.

O 21 de abril também era lembrado pela Assembléia Legislativa em solenidades que contavam com a participação de deputados da ARENA e do MDB. De acordo com o presidente da Assembléia , o deputado João Ferraz:

"É (...) na consagração do espírito da Inconfidência, ungido no sangue derramado pelo supremo sacrifício de Tiradentes, que devemos fortalecer os ideais de liberdade, de amor e de justiça, essenciais à preservação da paz, da unidade, da segurança e do progresso da família brasileira."

Em suma, os deputados mineiros (inclusive os da oposição) reforçavam esta postura de culto às datas cívicas e aos seus símbolos, reafirmando, como neste discurso do presidente da Assembléia Legislativa, a idéia de sacrifício de uma maneira ainda mais dramática - ungido no sangue derramado - como um elemento necessário para a preservação da paz. Este último termo vem associado a outros conceitos muito utilizados pelas lideranças do Estado. Conceitos estes que estavam ligados à própria idéia positivista de república veiculada no Brasil (o progresso), ao caráter imposto pelos militares à sociedade brasileira (a segurança) e ao elemento chave do discurso mineiro para falar em nome do país (a unidade). Tratava-se, através destes discursos, de tentar colocar os valores mineiros como fundamentais para, utilizando o conceito de Bronislaw Baczko, a elaboração do imaginário social brasileiro. Qual era o sentido disto? O exercício do poder, afinal,

"o imaginário social informa acerca da realidade, ao mesmo tempo que constitui um apelo à ação, um apelo a comportar-se de determinada maneira. Esquema de interpretação, mas também de valorização, o dispositivo imaginário suscita a adesão a um sistema de valores e intervém eficazmente nos processos da sua interiorização pelos indivíduos, modelando os comportamentos, capturando energias e, em caso de necessidade, arrastando os indivíduos para uma ação comum."

Associada às comemorações cívicas, o uso da propaganda política oficial foi outro elemento importante para reforçar os valores do regime militar. Órgãos como a Aerp (Assessoria Especial de Relações Públicas) e ARP (Assessoria de Relações Públicas) se encarregariam de tal missão. A Aerp foi criada em 1968 e a sua principal temática "era a emergência do Brasil como uma sociedade dinâmica original, tendo como pano de fundo o rápido crescimento econômico, então de 10 por cento ao ano. (...) Uma das temáticas mais eficientes da Aerp consistiu em associar futebol, música popular, presidente Médici e progresso brasileiro. Médici era excelente material para tal campanha. Adorava posar de pai e era fanático por futebol. (...) A equipe de RP do governo não perdeu tempo em colher todos os dividendos possíveis da conquista do tricampeonato mundial de futebol. A popular marchinha ‘Pra Frente Brasil’ composta para a seleção brasileira, foi oficializada e era tocada em todos os eventos públicos."

A propaganda política do governo desenvolveu slogans - como o "Brasil - ame-o ou deixo-o" - e campanhas que visavam reforçar o discurso do governo. Uma estratégia utilizada era falar do futuro. Falava-se na época em "Brasil Potência" e uma das principais campanhas foi exatamente "Este é um país que vai para frente" de 1976. Referir-se ao futuro significava falar em esperança (no ponto de vista do regime). Esta temática, aliás, está associada à própria constituição de um imaginário social, ou seja:

"Uma das funções dos imaginários sociais consiste na organização e controle do tempo coletivo no plano simbólico. Esses imaginários intervêm ativamente na memória coletiva, para a qual, (...) os acontecimentos contam muitas vezes menos do que as representações a que dão origem e que os enquadram. Os imaginários sociais operam ainda mais vigorosamente, talvez, na produção de visões futuras, designadamente na projeção das angústias, esperanças e sonhos coletivos sobre o futuro."

Com suas campanhas, mesmo as chamadas de utilidade pública, como a do Sugismundo - tratava da "limpeza urbana [em] setembro de 1972" -, a propaganda política reforçava o próprio discurso da Doutrina de Segurança Nacional, baseada no binômio segurança e desenvolvimento. A idéia passada nas mensagens era também de ordem e disciplina, termos próprios dos militares.
Os órgãos de propaganda do governo divulgavam ainda as datas cívicas e os símbolos nacionais. De acordo com Carlos Fico:

"As campanhas cívicas da Aerp/ARP foram, por assim dizer, as manifestações mais típicas de propaganda do período. Tratavam da fixação de heróis - como Caxias, Santos Dumont, Tiradentes e Rui Barbosa - e buscavam, através dos filmes, enaltecer ‘fatos históricos’ nacionais - como o Descobrimento e a Independência, velhos marcos balizadores da cronologia oficial criada pelo IHGB no século XIX. A difusão dos símbolos nacionais e a popularização das comemorações do Dia da Independência foram as grandes metas desse tipo de propaganda."

Entretanto, as comemorações não se limitaram aos mitos nacionais. Em Minas Gerais, outras datas eram lembradas e diziam respeito especificamente ao empresariado, como era o caso do Dia do Empresário Comercial. Foi neste tipo de solenidade que os governadores Rondon Pacheco e Aureliano Chaves foram homenageados com o título "Personalidade do Ano - Setor Público". No seu discurso de agradecimento, Rondon Pacheco afirmou: "O comércio interno e externo iniciou sua expansão e foi o modelador da nova sociedade brasileira. Dou relevo a esses aspectos para salientar, neste Dia do Comerciante, o quanto posso esperar da atividade comercial relativamente ao desenvolvimento integrado de Minas Gerais, objetivo maior de meu governo."
O importante, tanto no que dizia respeito ao conteúdo do discurso como em
relação ao ato da homenagem, era que havia a disposição de mostrar uma imagem de união. Não foi por acaso que o governador usou a expressão desenvolvimento integrado e colocou o comércio como um elemento importante para este crescimento.
Aureliano Chaves utilizou outros termos em seu agradecimento:

"Em nenhum momento da sua história, a Associação Comercial de Minas Gerais omitiu-se, quando os problemas que diziam respeito ao progresso, ao desenvolvimento do nosso Estado, tornando-se necessária a palavra das lideranças empresariais, peculiarmente das lideranças do setor do comércio." Em suma, para o governador: "Não há necessidade de dizer, porque aqui já foi dito com muita propriedade, que não se escreve a história de Minas Gerais sem se reservar um significativo capítulo à Associação Comercial do nosso Estado."

Basicamente, Aureliano Chaves disse a mesma coisa que Rondon Pacheco. Contudo, ele enfatizou o papel das lideranças, destacando principalmente a própria entidade. A associação da trajetória da ACM com a história de Minas Gerais tinha dois significados. Primeiro, estar relacionado ao passado do Estado, do ponto dos vista dos políticos, era motivo de orgulho, pois muitas vezes Minas era identificada com a sua tradição. Em segundo lugar, esta afirmação revelava também que, nesta perspectiva, os agentes da história eram as próprias lideranças. Outro termo importante utilizado por Aureliano Chaves foi a omissão. Algumas vezes, os mineiros são acusados de serem omissos, de não enfrentarem diretamente os confrontos. Com aquela frase, Aureliano Chaves tentava dizer o contrário.

Francelino Pereira mantinha a postura de elogios ao empresariado. Na comemoração de outra data importante para as lideranças mineiras, o Dia da Indústria, ele também destacou o papel das lideranças, utilizando termos positivos como diálogo e consciência, ou seja, nas suas palavras:

"(...) neste momento de transição econômica, social e política, é com grande satisfação que os mineiros vêem a atuação desta importante entidade de classe, que é a Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais, comemorando a Semana da Indústria com um amplo debate sobre as mais graves questões do momento. Aberta para o diálogo com a comunidade - através de suas lideranças mais expressivas - a Federação das Indústrias realiza aquilo que a Nação espera dos seus empresários: a consciência do papel social que lhes cabe representar neste País, agora e no futuro."

Em suma, além de reverenciar as datas cívicas (os símbolos nacionais, etc), os governadores mineiros faziam questão de participar das solenidades do empresariado. Nos seus discursos, era enfatizada a temática do desenvolvimento e a importância dos empresários (sobretudo as suas entidades de classe) neste processo. Mas e o trabalhador? De fato, não se poderia afirmar que este agente social era uma figura constante nos discursos das lideranças mineiras. Normalmente o desenvolvimento era mostrado como resultado da ação e da aliança do Estado e do empresariado. Basta lembrar o discurso do governador Rondon Pacheco na Mensagem à Assembléia Legislativa, na avaliação do ano de 1972:

"Para toda essa gama de realizações, contou o nosso Governo com o constante apoio do preclaro Presidente Médici, bem como a construtiva cooperação da Egrégia Assembléia Legislativa, das autoridades federais, dos organismos empresariais nacionais e estrangeiros e da equipe de trabalho que dá suporte à ação governamental, realizada em atmosfera de perfeita harmonia entre os Poderes do Estado."

Contudo, havia um momento em que o trabalhador era lembrado: o 1o. de Maio. Nesta data, falava-se da importância do trabalhador e sobretudo do seu papel cívico para com a sociedade, como podemos perceber em outro discurso de Rondon Pacheco, no qual ele afirmava: "Como Governador de Minas Gerais, em meu nome, no do Governo e do povo mineiro, levo, pois, ao Trabalhador a nossa mensagem de compreensão, apoio, estímulo e aplausos. Sabemos que no processo de desenvolvimento econômico e social em curso no território estadual, o Trabalhador desempenha uma parcela importante e significativa na totalidade dos programas e dos projetos. É assim, um participante a quem todos fazemos justiça e para quem na data que lhe é universalmente dedicada, levamos a nossa palavra de louvor e de reconhecimento."

Para o governador mineiro, era necessário fazer justiça, como se eles - as lideranças mineiras - tivessem esquecido do trabalhador e não omitido propositalmente a sua figura na construção da imagem progressita de Minas. Mesmo assim, apesar de reconhecer que o Trabalhador desempenha uma parcela importante no desenvolvimento, o governador destacava que ele era um participante, que estaria contribuindo com os verdadeiros agentes (reafirmados em outros discursos) - o Estado e o empresariado.
Aureliano Chaves levantava outras temáticas para falar do trabalhador, ou seja em suas palavras:

"É por isso que, elegendo o entendimento como método político, estamos em permanente contato com todas as entidades representativas do capital e do trabalho que, sem perda de sua independência, discutem com o governo os principais problemas que interessam às respectivas categorias e, de resto, ao Estado e ao País. (...) Neste dia, renovamos a nossa confiança em cada trabalhador que, anonimamente, contribui para o desenvolvimento das potencialidades mineiras, certos de que poderemos manter diálogo, cordial e respeitoso, que faz de Minas um exemplo de convivência democrática."

Na fala de Aureliano Chaves, o Estado aparecia como o interlocutor justo das classes sociais. Ele defendia ainda o entendimento como método político para o capitalismo, caracterizando, implicitamente, o tipo de trabalhador (cordial) que, na sua visão, interessava para a sociedade. O termo entendimento era associado ainda à imagem de Minas, visando desqualificar qualquer forma de conflito no Estado (afinal, Minas tinha que ser exemplo).

Se durante os governos Rondon Pacheco e Aureliano Chaves, o 1o. de Maio era utilizado com mais uma data cívica para reforçar a imagem do mineiro ordeiro e conservador, a partir do governo Francelino Pereira ocorreria uma mudança nas comemorações do Dia do Trabalho. O governador mineiro ainda tentou defender a imagem do trabalhador associada a termos como compreensivo, pacífico e solidário. Ou seja, de acordo com o seu discurso:

"(...) o Primeiro de Maio não é a festa de uma classe, mas de todo o povo, que, com seu sacrifício e patriotismo vem construindo a riqueza desta Nação. Muitas vezes se tentou fazer do Primeiro de Maio um dia de luta, de conflito e desunião. Muitas vezes ele foi utilizado para a enganadora retórica dos demagogos. Mas o nosso povo repudiou a violência e desmistificou as falsas utopias, preferindo o caminho seguro e gradual da construção pacífica e solidária."

Portanto, havia uma preocupação, no discurso de Francelino Pereira, em mostrar o Dia do Trabalho como um momento de patriotismo. Porém, após as greves de 78 e 79, não seria mais possível manter esta atitude. Depois destas mobilizações, o 1o. de Maio voltou a representar um momento de manifestação dos próprios trabalhadores, o que causou apreensão nos meios conservadores, como ficou claro no editorial do jornal Diário da Tarde de 2 de Maio de 1980:

"AS COMEMORAÇÕES do 1º de maio, com o trabalhador voltando às ruas para comícios e passeatas, as greves que pipocavam por todo o País, os movimentos reivindicatórios que se desencadeiam sobre ameaças de paralisações, merecem algumas observações, antes que a euforia pelo princípio de abertura política possa trazer conseqüências mais sérias.
ENTRETANTO, é preciso que as minutas de contrato coletivo ou de acordos salariais contenham reivindicações perfeitamente defensáveis. Não se pode jogar com o futuro de milhares de trabalhadores e de suas famílias aprovando a toque de caixa, ao sabor da emocionalidade das assembléias, reivindicações que poderão resultar em greves de curta ou de longa duração, apenas pelo simples desejo de fazer greves.
UM DITADO muito certo: não se conquista o céu e a terra de uma vez. Não se pode conseguir de uma vez a reparação de erros de 15 ou mais anos. Em suma, mesmo em reivindicações justas, é preciso usar o bom senso. Às vezes, transgredir não significa derrota, conciliar não se traduz por renúncia às posições. Mesmo porque em greves sucessivas, em reivindicações de difícil atendimento pode-se frustrar uma classe, pode-se por em risco uma sociedade. Pode-se levar ao desemprego, ao caos social."

O editorial do Diário da Tarde reconhecia que teria ocorrido uma transformação na comemoração do 1 º de Maio, mais do que isso, ela simbolizaria um sinal de mudança no próprio país, afinal, o trabalhador estava voltando às ruas para comícios, passeatas e greves. Havia até um reconhecimento de que teria ocorrido injustiças durante o regime militar (não se pode conseguir de uma vez a reparação de erros de 15 ou mais anos), mas o essencial do editorial era mostrar as mobilizações dos trabalhadores como algo perigoso e irracional, por isso o jornal utilizava expressões como emocionalidade das assembléias e caos social. De fato, o que ficava implícito neste tipo de discurso era uma temática importante para o debate político em Minas Gerais: o anticomunismo. Para discutir esta problemática é necessário lembrar um pouco a herança udenista (que era a linha política hegemônica entre as lideranças da década de 70). De acordo com Maria Victoria M. Benevides:

"A lógica do golpismo se introduziu na UDN como um vírus alastrante. O anticomunismo, presente nas denúncias constantes de ‘subversão’, revela, também, a patologia de antiga tradição aliada à penúria ideológica: trata-se do obscurantismo oportunista mas também do invencível temor de ‘erupção social’ pela ascensão política dos setores populares."

Apesar de ter sido fundamental no golpe de 64, nos anos 70 o anticomunismo perdeu um pouco a sua força. Ele era lembrado algumas vezes pelos políticos - o governador Aureliano Chaves achava que o país precisava "manter-se alerta contra a ameaça comunista" - e pelos jornais, em especial o Jornal de Minas:

"Como se vê, as oposições brasileiras, talvez por comodidade ou por incapacidade de criar programas originais para oferecer ao povo, como
alternativas válidas no quadro de uma democracia autêntica, estão aceitando, passivamente, as regras do jogo impostas pelo comunismo internacional. Mais uma vez os comunistas, mercê de uma férrea disciplina ideológica, respaldado no apoio de pseudoliberais, souberam explorar a indefinição ideológica dos partidos de oposição, que se autodefinem como democráticos, para lhes impor as questões políticas de seu interesse - cerne dos programas de todos os partidos oposicionistas - o que os torna rigorosamente iguais, diferenciando, apenas pelas siglas."

O jornalista que assinava a coluna Sem Reserva não deixava dúvidas quanto a linha editorial do jornal:

"JORNAL DE MINAS faz questão de declarar, também, que vai continuar seus ataques e denúncias contra os agentes da Grande Heresia ou Grande Utopia, sobretudo contra os que se ocultam atrás da Cruz de Cristo, ao mesmo tempo em que vão tentando metamorfoseá-la doutrinariamente, aos poucos, para convertê-la, afinal na Cruz da Foice e do Martelo."

A retórica do Jornal de Minas alertava contra o perigo representado pelos agentes da Grande Heresia, que poderiam se ocultar até mesmo entre os religiosos. Referia-se ainda às oposições brasileiras, que estavam sendo usadas pelos comunistas Este tipo de discurso era sempre utilizado; antes do Jornal de Minas, o deputado José Bonifácio já afirmava que iria fazer "investigações para provar até onde a oposição está fundamentada no Partido Comunista". Por último, outro ponto importante era a crítica ao processo de abertura e à própria democracia, pois a ação dos comunistas teria o apoio de pseudoliberais. No entanto, críticas desta natureza não representavam o contexto político da época. Desejar o confronto ideológico - nos moldes do que havia ocorrido em 1964 - não fazia mais sentido naquele momento. O que predominava (sobretudo em 1982) era o processo de redemocratização e a luta pelo poder através das eleições (como no caso dos governadores) voltava a ser uma realidade no debate político brasileiro.
Neste contexto, as próprias solenidades em comemoração das datas cívicas foram também perdendo a sua força ou assumindo outro sentido. Isso, porém, não diminuía a importância destes eventos enquanto representações significativas que visavam legitimar um modelo político no país.


BIBLIOGRAFIA

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BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. In.: ROMANO, Ruggiero (org.)
Enciclopédia Einaudi. v. 5: Anthropos - Homem. Lisboa, Imprensa Nacional/
Casa da Moeda, 1985, p. 296-332.

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa, Edições 70, 1988.

BENEVIDES, Maria V. M. A UDN e o Udenismo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981.

CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: o imaginário da República no
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