sexta-feira, 15 de maio de 2009

Marv em "Sin City" - uma relação entre os quadrinhos e o filme

(*) Este texto foi escrito originalmente em 2005.

Frank Miller revolucionou a linguagem dos quadrinhos em 1986, apresentando uma versão densa de Batman na história Batman - The dark knight (“Batman – o cavalheiro das trevas”). O seu último projeto foi a série Sin City (“Cidade do Pecado”), recentemente divulgada em sua versão cinematográfica. O filme e a série tratam de vários personagens, nesse artigo, porém, será discutida apenas a importância da figura de Marv no universo criado pelo autor.O filme Sin City foi co-dirigido pelo próprio Frank Miller. Nos depoimentos, ele havia demonstrado a sua descrença com a adaptação de suas histórias para o cinema. Roberto Rodriguez, o outro diretor do filme, contudo, conseguiu convencê-lo, trazendo-o para o projeto do filme: além da co-direção, Miller ainda fez uma participação como ator, interpretando o personagem de um padre, no confessionário, que ouve os pecados de Marv.O resultado de Sin City para o cinema é brilhante. Quentin Tarantino chegou a dizer que Miller havia “criado” o Michey Rourke com o personagem do Marv. De fato, no filme, a atuação de Rourke é a que mais se aproxima dos quadrinhos. Por outro lado, a postura da atriz Jessica Alba, que fez a stripper Nancy, recusando-se a fazer cenas de nudez, comprometeu um pouco a vida do seu personagem. Nos quadrinhos, claro, não existe esse tipo de “moralismo”. A stripper tira a roupa e seus traços estão mais próximos do tipo de bar que ela trabalha, ou seja, ela não aparece como uma mulher linda e perfeita no estilo “top model”.Contudo, o principal problema da adaptação cinematográfica de Sin City foi a ausência da figura da mãe de Marv. No filme, ela é citada apenas quando os policiais desejam obrigá-lo a assinar a sua confissão. Nos quadrinhos, Miller dedica alguns “quadros” a ela. Poucos, mas fundamentais para entender a importância da personagem na vida de Marv.
Essa relação é importante para entender quem é o Marv, ou seja, mesmo sendo considerado um psicopata, ele era uma pessoa de princípios. Por exemplo, apesar de todas as evidências, quanto ao principal responsável pelos assassinatos, levarem ao Bispo Rork, Marv procura ter certeza antes de assassiná-lo.Outro dilema em Sin City trata do que seria o “real” ou a “imaginação”. Marv precisa de remédios, havia sido preso, era um “marginal”. A normalidade e a lei seriam representadas pelas instituições, como a polícia e a igreja. Entretanto, Marv respeita as mulheres – “I don’t hurt girls” - e não gosta de injustiças. Os policiais são assassinos e corruptos. O bispo é um chefe de todo o processo de assassinatos das prostitutas. No filme, ele afirma: “they were all wores. Nobody cares for them.” Claro que o assassinato de prostitutas “sem valor” remete, de imediato, a figura de Jack, o Estripador.
Em outras palavras, para quê prender um assassino se as vítimas seriam “apenas” prostitutas? De certa forma, a imagem que é passada seria a de que o próprio assassino estaria fazendo um “favor” à sociedade na medida em que ele estava “limpando” as ruas...O tema do amor foi retomado como algo “puro”, mesmo considerando o clima de violência e de marginalidade. Para Marv, bastou uma noite com a Goldie para ele se apaixonar e levar adiante o projeto de vingança da morte de sua amada. Apesar dela ter omitido que era prostituta, Marv a agradece por ter revelado as pistas que o levariam a descobrir os crimes do bispo e do seu protegido, Kevin. Esse último é mostrado como um “nerd”, usa óculos, uma blusa de moleton, e nada na sua aparência de “bom menino” poderia revelar que trata-se, de fato, de um “psico-killer”. No embate entre Rork e Marv, aparecem, respectivamente, nos discursos, a sofisticação – “he just didn’t eat their bodies, he ate their souls” – e a simplicidade – “I just know it’s pretty weird to eat people”, o que choca com o conteúdo de cada mensagem, na medida em que o bispo tentava justificar os assassinatos – falando em “almas” – e Marv dizia apenas que não era normal “comer gente”. Em outras palavras, a forma sofisticada de um discurso omite uma mensagem equivocada, enquanto a fala simples defende uma postura ética. No final do diálogo, Rork não deixa se convencer – ele estaria certo, seria o “normal”, o “bom”, o “civilizado”, e Marv, por outro lado, representaria a “violência”, a “barbárie”, a “anormalidade” – pois, abraçando a cabeça de seu protegido, afirma: “Kevin, we’re going home”, ou seja, estaria indo para o paraíso, para o lugar dos “santos”. Marv é levado preso e, depois, condenado à morte – o que parece não incomodá-lo – “it’s damn time...”, ele afirma no filme.Sin City, o filme, mostra ainda a história de outros personagens de Frank Miller, como Dwight McCarthy e John Hartigan. Mas... essas são outras histórias...

SELMANE FELIPE DE OLIVEIRA

Doutor em História pela Pontícia Universidade de São Paulo - PUC SP

sexta-feira, 8 de maio de 2009

O DISCURSO ANTICOMUNISTA

OLIVEIRA, Selmane Felipe de. O discurso anticomunista. Ágora, Uberlândia, 1 (1): 64-73, jan./jun. 1993.

(*) Publicado também na internet: http://www.geocities.com/ceturho/oliveira2.htm

O discurso uberlandense procurava mostrar a imagem da cidade enquanto espaço limpo, harmonioso, que visava o progresso de todos. Na prática entretanto, não havia como negar as diferenças e as contradições sociais. Em outras palavras, ao mesmo tempo que a cidade era modelo de ordem e progresso era também reconhecida como a "Moscou brasileira"
O Comunismo era tema que incomodava, e desde a década de 20 já se iniciava uma campanha anticomunista nos jornais do município. Tratavam-se de notícias sobre o comunismo no mundo e, sobretudo, no Brasil. Contudo, essa temática tornou-se realmente importante somente em 1945, quando ocorreu fundação do Partido Comunista na cidade.
O PCB uberlandense teve uma participação significativa nas eleições de 1947, quando conseguiu eleger quatro vereadores sob a legenda do Partido Popular Progressista. Nessa campanha, eles contaram com a presença de Luís Carlos Prestes em comício promovido pelo partido em Uberlândia. E "(. . . ) apesar do fechamento do Comitê Municipal do PCB e suas respectivas células em 12/05/1947, seus elementos continuavam atuando, quer seja por meio reuniões, quer seja comemorando, com pichações, boletins e faixas, aniversários da Revolução Russa e até mesmo de Lênin."10
Até 1948, mesmo proibindo a atuação dos membros do PCB, a polícia uberlandense não reprimia de forma violenta as suas manifestações. Foi assim com o fechamento da sede do partido na cidade:


"a diligência ocorreu sem incidente, sem embaraço, encontrando as autoridades por parte dos responsáveis pelo partido em Uberlândia todo o respeito e acatamento às ordens que estavam sendo cumpridas. . . assim graças à seriedade das nossas autoridades que não quiseram dar caráter aparatoso à diligência, graças à boa vontade e o espírito de respeito a lei encontrado da parte dos dirigentes do partido nesta cidade, foi dado cumprimento às ordens e instruções recebidas da Chefia de Polícia. . ."11


Entretanto, esse quadro mudou a partir de 1948, quando houve um aumento do contingente policial do município, e ocorreram graves conflitos entre os militantes e a polícia.12 Em um desses conflitos, em 1951, foram feridos dois delegados de polícia13 e seis militantes foram presos e levados para Belo Horizonte.14
Mesmo na ilegalidade, os comunistas continuavam se elegendo para a Câmara Municipal, através da legenda de outros partidos, como o vereador Roberto Margonari, que afirmava na tribuna que seu partido era "O Partido Comunista do Brasil e não o Partido Republicano por cuja legenda foi eleito."15
Uma das principais lutas dos vereadores comunistas era contra a repressão policial. Como exemplos, podemos citar a atuação do vereador José Virgílio Mineiro, que denunciava o aumento do aparato policial em Uberlândia devido à realização de um Congresso de Camponeses na vizinha cidade de Capinópolis,16 e do vereador Roberto Margonari, que via no aumento da repressão policial "a possibilidade de um golpe, como em 1937, onde o poder usaria "a desculpa comunista."17
Ser comunista ou mesmo ser rotulado dessa maneira, não era algo simples na década de 50:


"Crítica, continuando na tribuna o vereador Roberto Margonari, a atitude do jornal local ‘A voz do Triângulo’ ao denunciar como comunistas patriotas uberlandenses, procurando amedrontar esses elementos na luta em defesa de determinados problemas nacionais,"18


Fica-nos clara, assim, a força do discurso anticomunista. Em 19/10/1953, a Câmara Municipal recebeu um ofício da Delegacia Especializada de Ordem Pública, alertando-a contra a ação dos militantes comunistas, pois tratava-se de "traidores da Pátria (. . . ) que juraram escravizá-la ao jugo das Potências do Mal."19
Havia ainda nos anos 50 a Cruzada Brasileira Anticomunista. O seu presidente, o almirante Carlos Pena Boto, afirmava que:


"(. . . ) há disseminados em Minas Gerais nada menos que 18.000 comunistas e que a infiltração dos vermelhos nas classes armadas, apesar das medidas de repressão postas em prática, constitui o mais grave aspecto da situação brasileira.’
Acrescentou o almirante Carlos Pena Boto que a cruzada, sob sua direção, conta com pleno apoio e a cooperação da igreja católica."20


O almirante Pena Boto tinha uma análise muito particular sobre os problemas do Triângulo Mineiro. Ele achava que a região era foco de comunistas, e que eles contavam com a proteção do deputado Mário Palmério:


"Houve a promessa de dividir uma unidade (do exército) entre Ipameri, Goiânia e Uberlândia, mas, na ausência do Ministro da Guerra, o Deputado Mário Palmério (do PTB), conseguiu, agindo em altas esferas, sediar em Uberaba a companhia que deveria ir para Uberlândia, apesar de Uberaba já contar com uma unidade da Polícia Militar.
Houve, o que é evidente, a intenção de não permitir o combate ao comunismo, onde Roberto Margonari, chefe comunista local, opera sob as vistas de um Estado Maior. (. . . ) Como Uberlândia constitui um ponto-chave comunista no Triângulo Mineiro, convém observar ainda que a Rádio Educadora local, provada sua ligação com o elemento comunista, continua no ar, graças aos esforços do mesmo deputado trabalhista junto às autoridades do governo."21

Na Câmara Federal, o deputado Mário Palmério respondeu a todas as críticas do almirante Pena Boto, explicando por que a unidade do exército foi para Uberaba e não para Uberlândia - ele disse que em Uberaba já existia algumas faculdades e uma "numerosa população acadêmica (. . . ), esses (foram) os fatores principais que me levaram a pretender instalar, também, em Uberaba, o Centro de Preparação de Oficiais da Reserva, para poder atender à preparação militar superior dos acadêmicos que ali residem e estudam"22 -, o seu envolvimento com a Rádio Educadora de Uberlândia, onde era o maior acionista - dizendo que não havia comunistas nessa rádio, que tratava-se, ao contrário, de críticas infundadas de outra rádio uberlandense, que era propriedade de membros do PSD -, e ressaltando, sobretudo, que Uberlândia não era "a Moscou brasileira do Sr. Almirante Pena Boto e nem o Triângulo Mineiro o quartel general do movimento subversivo comunista."23
Neste momento o deputado Mário Palmério contava com o apoio do jornal Correio de Uberlândia, mesmo existindo motivos para acirrar o bairrismo entre as duas cidades triangulinas - como questão da unidade do exército -, pois o problema maior era a imagem "negativa" da cidade como a "Moscou brasileira". Mesmo em outros momentos, o jornal procurava negar que Uberlândia fosse "foco de comunistas"24 ou que o Triângulo Mineiro fosse "foco de guerrilhas comunistas."25
Em 1959, o jornalista Marçal Costa publicou trechos de sua entrevista com Luiz Carlos Prestes, e sua opinião sobre o ex-líder comunista:


"O ex-capitão, ex-senador e ex-comandante máximo de milhões de simpatizantes da doutrina vermelha, Fidel Castro tupiniquim que mais de 20 anos antes do revolucionário de Sierra Maestra não libertou a pátria mas usou barbas e internou-se com uma histórica ‘coluna’ no Brasil selvagem e bárbaro, é hoje o retrato fiel de um pequeno burguês. Tem a fisionomia um pouco triste. Mas é um homem saudável. Está velho e não aparenta a idade que possui. À primeira vista pode-se avalia-lo com 38 ou 40 anos. Quando, como representante credenciado da imprensa, fui entrevistá-lo, Luiz Carlos Prestes trajava impecável ‘risca-de-giz’ de tropical brilhante. Colarinho perfeitamente engomado e gravata (poderia ser de outra cor) vermelha."26


Assim, até mesmo a figura - deturpada - de Prestes era usada na campanha anticomunistas. No discurso do jornalista, o velho revolucionário havia se tornado um pequeno burguês, dando-se a entender, sutilmente, um suposto arrependimento do ex-comandante, quando não a idéia de que vir a ser pequeno burguês era o caminho de todo comunista. Isso sem falar nas ironias - "mas usou barbas" - e nos termos pejorativos - "Fidel Castro tupiniquim" - que usou para montar a imagem do ex-lider comunista.
No início da década de 60, intensificou-se ainda mais o anticomunismo na cidade, com notícias da força dessa campanha no Rio e em São Paulo, com o apoio e as denúncias, respectivamente, da Associação Comercial do Rio de Janeiro27 e do Movimento Sindical Democrático, que tinha sede em São Paulo, onde, em reunião da entidade, "o Sr. Antonio Pereira Magaldi, presidente da Federação dos Empregados no Comércio do Estado de São Paulo, relatou a sua recente entrevista com o Ministro do Trabalho, quando apontou o perigo dos comunistas infiltrados nos sindicatos."28
Em 1963, o governador mineiro Magalhães Pinto alerta contra uma possível "revolução sangrenta":


"Precisamos antes de tudo, unir a nossa Pátria, para sua definitiva emancipação. Temos que preservar o Brasil de uma revolução sangrenta, que não duvidemos internacionalizaria aqui uma guerra, uma luta fraticida"29


Em 1964, pouco antes do golpe militar, os vereadores uberlandenses discutiam a nota divulgada pelo Sindicato Rural de Uberlândia, onde essa entidade se posicionava de maneira clara contra a vinda do deputado Leonel Brizola a cidade.30
Com o golpe militar, o que era campanha anticomunista, tornou-se, de fato, caça aos comunistas:


"Em Uberlândia, a partir de ontem, o exército prendeu várias pessoas e políticos, supostamente implicados em uma revolução que implantasse um regime comunista no Brasil."31


No município houve também a Marcha da Família Com Deus Pela Liberdade, apoiando o movimento militar de 1964:


"Uberlandenses de todas as categorias sociais, aos milhares sem credo político, ou religioso, participaram na noite de anteontem da Marcha Com Deus Pela Liberdade, um dos maiores acontecimentos cívicos já ocorridos em nossa terra, comemorando a vitória da democracia, grito de legalidade partido das montanhas altaneiras da gloriosa Minas Gerais.
(. . . ) A monumental Marcha Com Deus Pela Liberdade foi uma festa do povo autêntica e espontânea. Mas foi também uma demonstração de que Uberlândia está ao lado da ordem, da democracia, em campo oposto ao comunismo ateu e desagregacionista, destruidor da família brasileira. As escolas de samba do povo desfilaram, os estudantes, os trabalhadores, os operários, intelectuais, homens do comércio e do campo, enfim, todas as classes sociais disseram ‘presente’ à marcha, simbolizando o ‘não’ ao totalitarismo que se tentou impor ao Brasil livre."33
Na Câmara Municipal, os vereadores "suspeitos" solicitavam a palavra para em discursos emocionados, tentar convencer os colegas de que eles não eram comunistas. Foi assim com Natal Felice,34 João Pedro Gustim e Carlito Cordeiro.35 Isso não impediu, porém, a renúncia de Carlito Cordeiro36 nem a cassação do mandato de Natal Felice, sendo que esse último, de acordo com capitão Cláudio, comandante da 3a. Cia do 6o. B.C., "estava fichado pelo exército como agitador, e (. . . ) era preciso afastar os agitadores da Tribuna da Câmara."37 Na cidade, esse clima repressivo não era diferente. A diretoria eleita de UESU - entidade estudantil - foi impedida de tomar posse, "porque alguns elementos de sua composição estão sob acusação de prática de idéias comunistas, contrárias ao regime democrático instaurado graças ao movimento revolucionário de 1o. de abril."38 A repressão não ocorria somente sobre os estudantes:

"Todas as associações de classe, entidades sociais, sindicatos, etc., componentes do sistema associativo de Uberlândia serão expurgados de elementos comunistas, tão logo se prove sua participação autêntica em movimentos subversivos ligados ao deposto governo Goulart. A medida visará, de maneira coerente, libertar tais entidades, a fim de que possam prosseguir em suas finalidades dentro do regime democrático, isentas de atividades estranhas ao nosso sistema cristão e humano que está muito ausente da teoria materialista e vermelha importada da China e Cortina de Ferro."39

Assim, nos governos militares, o Jornal Correio de Uberlândia ficava ainda mais à vontade na sua campanha anticomunista, afirmando, inclusive, que essa era também a postura da cidade:

"O rompimento de relações do Brasil com o regime comunista cubano, ponta de lança do perigo vermelho nas Américas sob o domínio do ditador títere de Moscou, Sr. Fidel Castro, obteve a mais franca atitude de aplauso por parte da população democrática da cidade de Uberlândia . Tão logo circulou a notícia mantivemos contato com diversas fontes para saber como era encarada a atitude do governo brasileiro no caso cubano. Professores advogados e médicos manifestaram aplauso ao presidente Castelo Branco pela acertada medida."40

Como parte de sua política anticomunista, o jornal começou a publicar, em 1966, uma coluna da T.F.P. (Tradição, Família e Propriedade), com o seguinte título: "Universitários da TFP". Os artigos analisavam temas variados - como o comunismo, a filosofia da História, a reforma agrária, o divórcio, a família, a juventude brasileira, entre muitos outros - dentro da perspectiva cristã, conservadora e anticomunista, como podemos perceber nos exemplos abaixo:

- Sobre o comunismo no mundo: "A enorme propagação do comunismo, desde a sua oficialização em um Estado comunista em 1917, não se explica somente pelos tanques, bombas, campos de concentração e demais aparelhos bélicos usados na intimidação das potências que lhe são opostas. A maior parte do êxito se deve à exploração das profundas tendências desregradas da alma humana, cujo orgulho satânico se revolta contra toda espécie de autoridade e privilégios. Eis um campos magnífico, que o comunismo explora amplamente."41
- Sobre o socialismo e a família: "O Socialismo, suscitado para substituir a ordem de Deus pela desordem do demônio, está forjando uma sociedade igualitária, anorgânica, e, por conseguinte, anti-hierárquica e diametralmente oposta à sociedade medieval! Por isso importa-lhe abater a base da sociedade católica - a família - a principal fonte de desigualdades. Daí que o socialismo, nos estágios mais avançados, propugna pela dissolução da família e pelo amor livre."42
Em relação à TFP, o jornal Correio de Uberlândia não se limitava a publicar somente a coluna universitária. Ao contrário, esta entidade tinha espaço no jornal para divulgar suas notícias e suas atividades, como o curso de formação anticomunista que ocorreu em São Paulo em 1968.43 Em Uberlândia, os políticos chamavam seus adversários de esquerdistas e ameaçavam entregá-los para os militares. É interessante perceber que isso se dava dentro do próprio partido do governo - a ARENA - , entre facções diferentes. o prefeito Renato de Freitas era criticado pelo vereador Amir Cherulli, que ameaçava pedir "ao Conselho de Segurança Nacional, para que enquadre o Prefeito desonesto (. . . ) nos atos de revolução,"44 e quando foi reeleito para a prefeitura em 1972, outro vereador, Antônio Carlos de Oliveira, acreditava na possibilidade.

"(. . . ) de que os ganhadores da eleição estarem ligados a grupos internacionais comunistas e que, possivelmente, mostrou o absurdo das despesas feitas, tenha sido financiados por países esquerdistas do continente. E acredito que os futuros auxiliares do novo prefeito serão todos da linha esquerdistas. Que os subversivos já estão se organizando e operando em Uberlândia fazendo com que ela volte a ser congnominada de ‘Moscou Brasileira’."45
Assim, o discurso anticomunista era utilizado na lutas políticas do município, enquanto ameaça, para Uberlândia não voltar a ser a "Moscou brasileira". No entanto, tratava-se mais de um mecanismo na luta pelo poder local do que críticas sérias e fundadas. A cidade estava plenamente de acordo com os governos militares, como podemos perceber na comemoração dos aniversários da "revolução democrática", com artigos na imprensa46 e sessões especiais na Câmara Municipal.47 Na década de 70, além dessa comemoração - e mesmo outras datas militares eram reverenciadas, como o Dia da Vitória Aliada48 e o Dia do Soldado49 - . a imprensa divulgava, de um lado, com certa naturalidade, as manobras na região,50 e de outro, criticava duramente "os agentes do terrorismo", como Lamarca, que vivia como um "verdadeiro burguês", de acordo com Correio de Uberlândia:

"A propósito, terroristas da VPR presos, principalmente os que repudiam a organização, se referem aos milhares de dólares recebidos por Lamarca que lhe permitiram mandar sua família legítima, esposa e filhos, para Cuba onde vivem como ‘nouveaux riches’ e também, continuar no Brasil como um verdadeiro burguês sustentando outra família constituída com sua amante, a terrorista Yara Yavelberg."51

No final dos anos 70 houve o retorno das greves a nível nacional, sobretudo em São Paulo, 52 e iniciou-se um processo de luta pelo fim dos governos militares. Em Uberlândia, também ocorreram mudanças, como o fortalecimento do MDB53 - partido que até então não tinha participação expressiva na cidade - e o ressurgimento das greves - como a dos professores estaduais, dos bancários e dos estudantes da UFU54 - , o que era condenado pela imprensa local.55
Além das greves, a sociedade uberlandense começo a se organizar também através das Associações de Moradores (AMs). Entretanto, a criação das AMs na cidade fazia parte da estratégia de um grupo do PMDB para chegar ao poder.56 Esse grupo, baseado nas AM s e em outras organizações populares, venceu as eleições para a prefeitura de Uberlândia em 1982, e fez questão de se diferenciar, tanto no discurso como na prática, das administrações anteriores, como podemos perceber na mensagem do Executivo a Câmara Municipal de 1984:

"(. . . ) o nosso Projeto de Governo, no ano que passou, teve um desenvolvimento auspicioso. No plano político procuramos lançar as bases da Democracia Participativa como método de governo. Acreditamos que a participação do povo, suas críticas e sugestões, são importantes para um melhor aproveitamento na aplicação dos recursos públicos que a cada orçamento ficam escassos. No plano administrativo, de obras e serviços, procuramos atender às necessidade mais urgentes da população, investindo e aplicando os recursos na área social. A nossa preocupação maior foi e continua sendo a de resgatar a enorme dívida social deixada pelo passado."57

Assim, o prefeito do PMDB Zaire Rezende encaminhava a sua administração de uma maneira diferente das anteriores, contando inclusive com o apoio e a participação de comunistas no seu governo. Aliás, nesta conjuntura de abertura política e redemocratização do país, o discurso anticomunista caía no vazio. Se antes fora um aspecto fundamental do discurso conservador - dos grupos que estavam no poder, indo das prefeituras, como Uberlândia , até ao governo federal, dominado pelos militares -, na década de 80, com as mudanças políticas e a redemocratização, com a ascensão de novos grupos, tanto a nível municipal e estadual, e com a implantação da Nova República, o anticomunismo tornar-se-ia um fantasma do passado.

O QUEBRA-QUEBRA DE 1959

OLIVEIRA, Selmane Felipe de. O Quebra-quebra de 1959. Cadernos de História,
Uberlândia, 4 (4): 89-97, jan./dez. 1993.

(*) Publicado também na internet: http://www.geocities.com/ceturho/oliveira1.htm

A imagem normalmente associada ao governo de Juscelino Kubitschek é a de industrialização e desenvolvimento econômico. Aliás, de acordo com a análise de Maria Victoria M. Benevides, não há como negar esse desenvolvimento. O problema, para ela, é a questão da estabilidade política. Daí a sua hipótese (confirmada no final do trabalho): "a estabilidade política do Governo Kubitscheck foi fruto de uma conjuntura favorável, na qual as Forças Armadas (notadamente o Exército) e o Congresso (aliança majoritária PSD/PTB) atuaram de maneira convergente no sentido de apoiar a política econômica, cujo núcleo era o Programa de Metas."58 A hipótese de Maria Victoria M. Benevides "parte do pressuposto de que o Governo Kubitschek foi efetivamente estável. No entanto, não se pretende negar a instabilidade do contexto histórico mais amplo."59 Em outras palavras, apesar do grande desenvolvimento econômico, da estabilidade política, ocorreram crises, conflitos e manifestações contra o governo. Entre essas manifestações estava o quebra-quebra, fenômeno onde a população, de forma organizada ou não, se voltava contra a ordem, o status quo, atacando, saqueando, e destruindo lojas comerciais, prédios públicos, cinemas, etc. Esse fenômeno aconteceu em Uberlândia e 1959. Aliás, no mesmo ano já havia ocorrido quebra-quebra em São Paulo, Belo Horizonte, Fortaleza e em Santa Catarina,60 de modo que o episódio de Uberlândia não foi um acontecimento exclusivo. Entretanto, o que chocou a opinião pública da época - a cidade foi manchete nos principais jornais e revistas do país61 -, foi que, ao contrário das capitais, Uberlândia era vista como um município tranqüilo e ordeiro.
As manifestações de quebra-quebra aconteciam como protesto contra o aumento do custo de vida. No caso de Uberlândia, o estopim foi o aumento do preço dos cinemas, onde a entrada passou de 18 para 30 cruzeiros. O povo protestou. Primeiro, através de "fila-bôba", aglomerando-se nas portas dos cinemas, e depois, de forma violenta, invadindo, depredando e incendiando:

"O material arrancado aos cinemas era trazido para a rua entre gritos e incendiado sobre o asfalto. Perigosas fogueiras erguiam chamas para o alto, enquanto a multidão bradava. Inúteis foram os pedidos de calma. Inúteis todas as intervenções. U’a multidão enfurecida (não se sabe por que) destruía tudo. Uberlândia ficou sem os quatros cinemas."62

A fúria da multidão era contra o aumento do preço dos cinemas - um dos principais meios de lazer da época -, o que representava também o aumento do custo de vida. O quebra-quebra começou de forma espontânea, ninguém esperava, e não foi organizado por partidos ou grupos de esquerda. Neste momento, era o povo nas ruas, espontaneamente, protestando e destruindo. Após a destruição dos cinemas no domingo (18?01/1959), veio a expectativa do que poderia acontecer no dia seguinte. Chegou reforço policial da cidade de Uberaba. Rumores alertavam que o quebra-quebra continuaria no mercado central da cidade, local para onde foi quase todo o contingente policial. Entretanto lá havia apenas mulheres e crianças, que tentavam chamar a atenção dos policiais, enquanto, em outro local, na Av. João Pessoa, ocorria efetivamente o quebra-quebra:

"(. . . ) outro grupo assaltava a máquina de arroz Messias Pedreiro. Assaltava com extrema violência, saqueando tudo, roubando, incendiando, destruindo. A polícia não pôde agir, pois guardava o mercado. Houve estratégia nessa ‘manobra’ dos vândalos. As cenas que a reportagem do CORREIO DE UBERLÂNDIA assistiu são indescritíveis. O vandalismo supera qualquer destruição, por mais realista que seja"63

Os saques continuaram. Depois do Messias Pedreiro foi a vez da Casa Caparelli, onde a multidão atacou, "levando armas, (. . . ) bicicletas, utensílios domésticos, máquinas de costura e todo o estoque daquela grande firma atacadista."64
Após esses saques, chegou o reforço policial de Belo Horizonte e a violência continuou, mas neste momento, contra os manifestantes e os saqueadores: quatro pessoas foram mortas, 12 feridas e 200 presas. Além disto, uma parte da mercadoria saqueada do Messias Pedreiro e da Casa Caparelli foi "arrecadada" pela polícia.65 O quebra-quebra durou exatos dois dias - 18 e 19 de janeiro de 1959, mas gerou expectativa e tensão na cidade por algum tempo. A Associação Comercial, por exemplo, ficou em assembléia permanente por nove dias (19 a 27/01/1959). Isto sem falar que o "quebra-quebra" de 1959 serviu como exemplo da capacidade de protesto da multidão e é sempre lembrado, em épocas de crises, como um pesadelo a ser evitado."66 Muitas análises foram feitas sobre o quebra-quebra. A imprensa local67 condenava o tumulto e os saques, mas, ao mesmo tempo, também criticava o governo e alta do custo de vida. A UESU (União dos Estudantes Secundários de Uberlândia) veio a público esclarecer o seu envolvimento no quebra-quebra, dizendo que, apesar de ter organizado a "fila-bôba" na porta do cinema, "jamais foi intenção daqueles colegas promover qualquer manifestação semelhante ao ‘quebra-quebra’ que se originou",68 ressaltando ainda que o número de estudantes nas violentas manifestações era insignificante. Na revista Elite Magazine, o professor Nelson Cupertino tentava minimizar as manifestações, colocando a culpa na imprensa, que era sensacionalista:
"Assim, em relação aos acontecimentos mais recentes: um simples ‘quebra-quebra’, brutal manifestação do desorientamento coletivo, torpemente explorado por interesses escusos, vem sensacionalmente sendo exibido na T.V. e nas publicações ilustradas, como prova inconcussa da selvageria vigente nesta nossa terra! Puro sensacionalismo! Unicamente o propósito de ampliar tiragens forçando a procura, mediante excitações da curiosidade! Porém, eliminados esses condimentos de psicologia barata, só restam em campo aqueles genuínos elementos que, submetidos a uma análise definitiva, irão reduzir-se aos termos da misérias econômica ou moral que proveram tão triste façanha.69

Na Câmara Municipal, o vereador Homero Santos sugeriu o envio de "um ofício ao Secretário de Segurança do Estado elogiando as atuações do Sr. Delegado Tenente Coronel Josino Ramalçho Pinto e ao Tenente Eustáquio Murilo da Silva"70 na repressão ao quebra-quebra de janeiro de 1959. Essa sugestão foi muito discutida, e não foi aprovada pela Câmara Municipal, porque, entre outras coisas, como disse o vereador Lázaro Chaves, no caso do Tenente Eustáquio Murilo, não fazia sentido tal elogio, na medida em que "ele usou e abusou da força em Uberlândia, espancando populares e agindo de maneira parcial."71 O prefeito da cidade também tinha a sua própria análise sobre o quebra-quebra, só que na sua opinião, o responsável por esses acontecimentos era o Estado de Minas Gerais, que não destinava recursos financeiros ao município para construção de delegacias especializadas ou mesmo de escolas, pois em suas palavras, "sem instrução e sem conhecimentos culturais e morais, que só a Escola transmite, uma população ignorante se acha a um passo do crime, do vandalismo, do saque e da barbárie."72 Examinemos, por último, a postura e a atuação da Associação Comercial. Em primeiro lugar, como foi dito antes, ela ficou em assembléia permanente por nove dias. Os empresários ficaram assustados. A principal preocupação da associação era conseguir reforço policial, para tanto, foram dados vários telefonemas, sobretudo para autoridades, estaduais e federais, ligadas ao serviço de segurança pública. A Associação Comercial também solidarizou-se com os comerciantes saqueados - Messias Pedreiro e Francisco Caparelli -, enviando ofícios e uma comissão para expressar os seus sentimentos. O 1o. vice presidente desta entidade, Helvio Cardoso, "propôs ainda que se desse publicidade as providencias tomadas pela Associação e a confiança que deposita nas autoridades policiais, as quais se comprometeram a manter a ordem na cidade."73

Renato Humberto Calcagno, ex-presidente da Associação Comercial, em entrevista ao jornal Correio de Uberlândia, expressou de forma clara a visão dos empresários sobre o quebra-quebra.

"Com desolação e com pesar refletiram em nosso ânimo os reprováveis acontecimentos. Uberlândia e o seu povo não mereciam uma tão infeliz propaganda. Os responsáveis devem existir, deram prova de desprezo e de falta de amor a esta cidade acolhedora e pródiga. Outra é a civilização do uberlandense, tão afeito ao trabalho, ao progresso, ao respeito com o próximo. Isso tudo, largamente divulgado e comentado em todo país, mais ainda nos entristeceu. (...) Esta página negra deve ser virada em definitivo. Que todos se unam para o bem; que as autoridades se compenetrem no seu dever para com todos; que o povo reflita, respeite o seu semelhante e ame a terra em que vive; (. . . ) enfim, que todos concorram para a concórdia, para a tranqüilidade e para a grandeza desta generosa terra. Só assim Uberlândia continuará a sua marcha vitoriosa e se afirmará como uma das maiores cidades do interior brasileiro, como já é. A violência, a agitação e a discórdia não constróem e não aproveitam a ninguém, senão aos mal intencionados. Ajudemos Uberlândia, como Uberlândia nos ajuda!"74

Assim, mais uma vez a análise burguesa baseou-se na temática da ordem e do progresso, ressaltando ainda a questão do trabalho e "o amor a terra em que vive". A preocupação com a imagem da cidade foi outro ponto fundamental - "Uberlândia e seu povo não mereciam uma tão infeliz propaganda" -, pois a burguesia local sempre lutou para manter a visão do município enquanto espaço harmonioso e sem conflitos sociais. Essa ideologia servia tanto internamente - para desestimular as greves, as organizações populares, de classes, em nome do interesse da "cidade", do "bem comum" - como externamente - para atrair empresas e benfeitorias para o município, na medida em que se tratava de um povo ordeiro e trabalhador.
Entretanto, o quebra-quebra de 1959 mostrou o oposta da imagem burguesa da cidade: foi a desordem, a revolta, a destruição e os saques. A própria esquerda uberlandense ficou sem ação diante da revolta popular. A cidade que era vista como "foco de comunistas", não teve o PCB ou qualquer outro partido na vanguarda das manifestações. Ao contrário, a UESU, entidade estudantil, em nota oficial, veio negar a sua participação no quebra-quebra, dizendo ainda que o número de estudantes nestes acontecimentos era "insignificante". Para entender a postura da esquerda em Uberlândia, seria interessante recorrer ao trabalho de Jane de Fátima S. Rodrigues, que analisando a participação do P.C.B. e a trajetória da classe trabalhadora na cidade, concluiu o seguinte:

"(. . . ) sobre a questão partidária, é válido afirmar que os partidos políticos locais contribuíram, em muito, para viabilizar o projeto da ordem e do progresso. Acreditamos que, embora a posição do P.C.B. não se rivalizasse com o dos demais partidos no que dizia respeito ao projeto da ordem e do progresso, os constantes choques armados com a polícia, prisões e espancamentos serviram para conformar a classe trabalhadora uberlandense dentro dos limites do quadro político partidário imposto ao país. (. . . ) A convergência para o projeto de cidade, e não de classe, sugeriu, muitas vezes, tanto à classe patronal como ao operariado, que algumas de suas propostas fossem obstadas."75

Portanto, podemos dizer que, além da repressão policial, outro fator fundamental para enquadrar a esquerda uberlandense no processo de "ordem e progresso", foi justamente "a convergência para o projeto da cidade, e não de classe. "Talvez isso explique a omissão dos partidos políticos e das organizações de esquerda no quebra-quebra de 1959. Porém, se de um lado houve omissão, de outro, o "remédio" encontrado para as manifestações populares foi a repressão policial. Essa foi a postura da burguesia local, representada pela Associação Comercial. Os reforços policiais vieram de Uberaba e de Belo Horizonte. "Uberlândia transformou-se em autêntica praça de guerra. Fortemente policiada, perigosamente em polvorosa, suas ruas eram percorridas por viaturas de policiais que disparavam suas armas para dispersar grupos."76
A ação violenta da polícia contou com o apoio da burguesia, de políticos e até da imprensa, que via os manifestantes como uma "multidão de vândalos que não protestava contra nada. Apenas extravasava instintos e dava vazão a vontade de apropriar-se do alheio."77 Em outras palavras, "os vândalos" tomavam a força o que não lhes pertencia: o povo apropriando-se do que é da burguesia. A reação burguesa - ferida em dois dos seus principais valores: a ordem e propriedade - veio com a fúria e a violência dos policiais, que deixaram como "saldo" s quatro mortos e muitos feridos. Em resumo, o quebra-quebra de 1959 mostrou o avesso da ideologia burguesa: a resistência popular, demonstrada através dos protestos e dos saques. Tratou-se também de um movimento sem uma vanguarda enquanto partido ou grupo político. O povo nas ruas, protestando, destruindo, saqueando, surpreendendo as organizações burguesas e mesmo os militantes de esquerda. Enfim, uma ação popular sem controle, que teve como resposta, uma reação violente e organizada, arquitetada pela burguesia e realizada pelas tropas policiais.

CRESCIMENTO URBANO BRASILEIRO O CASO DE UBERLÂNDIA

OLIVEIRA, Selmane Felipe de. Crescimento urbano brasileiro: o caso de Uberlândia. Ícone, Uberlândia, 2 (1): 113-132, jan./jun. 1994.

(*) Publicado também na internet: http://www.geocities.com/ceturho/oliveira5.htm

. O CRESCIMENTO ECONÔMICO

Crescimento urbano está ligado sobretudo ao avanço da industrialização do país. Assim, antes de analisarmos a questão urbana, seria interessante perceber, resumidamente, as principais características da recente história econômica brasileira.
O sistema econômico do Brasil está inserido no sistema capitalista internacional, onde suas relações são caracterizadas como relações de dependência. Até meados do século XIX, o Brasil era um país essencialmente agrícola, onde a principal mão-de-obra era o escravo. "Entre a abolição da escravatura (1888) e a Revolução de 30, houve no Brasil importantes transformações econômicas, sociais e políticas. Iniciou-se o processo de desenvolvimento mediante substituição de importações, com a constituição de um importante parque industrial produtor de bens de consumo não duráveis (tecidos, roupas, alimentos) principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, e de uma ampla agricultura no Rio de Janeiro e em São Paulo, e de uma agricultura comercial voltada para o mercado interno, nos estados de colonização alemã e italiana (Rio Grande do Sul e Santa Catarina). A imigração européia avolumou-se fortemente, atingindo seu auge antes da 1ª Grande Guerra, integrando-se os imigrantes na cafeicultura e nas novas atividades do Setor de Mercado Interno. Iniciou-se um tímido processo de urbanização, com o crescimento proporcionalmente mais rápido das capitais que eram centros de mercados regionais: Rio São Paulo, Porto Alegre, Recife e Belo Horizonte"
Essas mudanças ocorridas entre 1888 e 1930, foram, de certa forma, conseqüência das crises capitalistas internacionais. A crise de 1929 e a primeira guerra mundial criaram situações difíceis e de isolamento para o país, que até então era caracterizado basicamente enquanto produtor e exportador de produtos agrícolas, a partir desta época iniciou-se a chamada substituição de importações, com o início do processo de industrialização e ainda de uma maior urbanização nos grandes centros.
Este processo de mudanças foi aprofundado a partir de 1930. O governo de Getúlio Vargas procurou estabelecer uma política de industrialização, criando ao mesmo tempo "uma legislação de trabalho aplicável unicamente às áreas urbanas (na verdade, apenas às cidades maiores) que proporcionou aos assalariados urbanos um padrão de vida substancialmente mais alto que o das massas rurais, Surge desta maneira um sistema de incentivos que atrai uma parcela crescente dos trabalhadores rurais às cidades. A grande massa rural confinada na economia de subsistência, passa a constituir para a economia capitalista industrial um verdadeiro reservatório de mão-de-obra ou, na expressão clássica de Marx, um exército industrial de reserva"
Assim, se de um lado crescia a migração interna, com campo para cidade, por outro, a imigração estrangeira caía drasticamente no período pós-1930. "O número de imigrantes chegados no Brasil era de 622.397 entre 1900 e 1909, atingindo seu montante máximo entre 1910 e 1919: 815.463. Na década seguinte (1920-29) o total se manteve próximo deste nível 788.170. Porém, daí em diante o número de imigrantes cai drasticamente: 322.768 entre 1930 e 1939, e 114.405 entre 1940 e 1949. (...) Pois bem, apesar desta queda da imigração do exterior, a absorção de mão-de-obra pela economia capitalista acelerou-se cada vez mais, graças a um aumento cada vez maior das migrações internas, cuja componente principal era a migração rural-urbano".
Essa migração era direcionada aos grandes centros, sobretudo a São Paulo e ao Rio de Janeiro, onde estava ocorrendo a industrialização, e o conseqüente fortalecimento do setor comercial e de serviços. O crescimento econômico dos grandes centros, com destaque para São Paulo, criou desequilíbrios regionais no país. Wilson Cano analisa essa temática, descartando a hipótese do crescimento de São Paulo baseado na exploração de outras regiões, principalmente o nordeste. Para Wilson Cano, ao contrário, São Paulo cresceu baseado na dinâmica de sua própria região. Ou seja, em suas palavras, "a liderança do desenvolvimento capitalista em São Paulo, uma vez obtida (pré-1930) tendeu a acentuar-se, por razões que dizem respeito, antes de mais nada, à dinâmica do próprio pólo"
Wilson Cano descarta, portanto, a análise que privilegia o conflito entre os estados ou regiões, e afirma:
"Não há por que brandir arma contra suposta ‘exploração’ de São Paulo sobre a periferia, ao contrário, tornar-se-á, tão somente, a defesa dos interesses capitalistas regionais. è necessário que se estude o óbvio: os interesses dos assalariados de todo o Brasil devem ser solidários, juntamente com os dos trabalhadores rurais. Caso contrário, estaríamos aplicando regionalmente, equivocadas teses sobre o imperialismo mundial e acabaríamos dizendo o absurdo de que os operários paulistas exploram seus confrades da periferia..."
Assim, de acordo com Wilson Cano, os interesses regionais são usados ideologicamente para desviar a atenção dos verdadeiros problemas - como seria o caso da união dos trabalhadores.
Paul Singer, analisando o crescimento brasileiro, afirma que uma das principais características deste processo foi a constituição de um exército de reserva, "que deu lugar a um abundante suprimento de força de trabalho pouco qualificada mas dócil e de aspirações modestas". Especificamente neste último ponto, não concordamos com Paul Singer, pois afirmar que o trabalhador brasileiro é "dócil", significa desmerecer o processo de luta - através de greves, manifestações, etc - e de organização desta classe. Entretanto, no que diz respeito à análise geral da economia e da urbanização do Brasil, achamos que este autor tem dado contribuições significativas.
O processo de mudanças no capitalismo brasileiro teve outro momento fundamental na segunda metade da década de 50, com a entrada maciça de capital estrangeiro no país. Essas mudanças foram conseqüências sobretudo da política industrial adotada no Brasil. Carlos Lessa afirma que antes de 1950, especificamente entre 1948 e 1950, "a industrialização (....) surgiu como uma decorrência e não de um objetivo principal intencionalmente perseguido" Na década de 50, no seu intender, ocorreram duas fases na política econômica brasileira. "A primeira inicia-se em 1951 e estende-se até a segunda metade de 1954. consubstanciando o que poderíamos denominar de "a primeira aproximação à política de desenvolvimento". Nesta etapa lançaram-se as bases instrumentais das políticas econômicas do decênio. A segunda etapa preside a metade superior do decênio, quando sob o esquema do Plano de Metas, todos os esforços foram intencionalmente dirigidos à construção dos estágios superiores da pirâmide industrial verticalmente integrada. A segunda etapa se distingue da primeira pela maior intensidade dos esforços e pela amplitude e integração dos objetivos setoriais perseguidos." Com o Plano de Metas, houve efetivamente uma política econômica no país, o que significou, no caso do governo de Kubitscheck, um aumento na participação do Estado na economia.
Analisando este período Carlos A. Afonso e Hebert de Souza afirmam que:
"A partir das décadas dos anos 50 e 60 (. . .) ocorrem alterações fundamentais no sistema capitalista mundial. Agora não temos somente sistemas produtivos capitalistas nacionais articulados com sistemas comerciais e financeiros internacionalizados. O que hoje se analisa como fenômeno das corporações multinacionais (. . .) expressa de fato a configuração de uma realidade de qualidade diferente no desenvolvimento do capitalismo contemporâneo: como resultado do processo histórico de internacionalização do modo de produção capitalista, se define claramente um sistema produtivo capitalista mundial, isto é, um sistema do capital mundial ou multinacional que não mais se expressa somente através de uma comercialização mundializada, de um sistema financeiro internacionalizado, mas que (e este é o aspecto central do que há de novo) articula um sistema produtivo que opera a nível internacional numa escala global e segundo objetivos e alcance medidos nessa escala mundial"
Com o governo Kubitscheck, o Brasil entrou efetivamente nesta nova ordem capitalista mundial, onde o sistema baseava-se no fenômeno das corporações multinacionais. Desta maneira, portanto, o capital internacional tornou-se um elemento fundamental na industrialização brasileira. Entretanto, uma questão nos parece pertinente neste momento: não houve conflito entre a burguesia brasileira e as multinacionais? De acordo com Jacob Gorender, não, porque "foi a própria burguesia brasileira, como classe, que precisou do capital estrangeiro e o incentivou a vir ao Brasil. O nacionalismo da burguesia brasileira não implica a rejeição capital estrangeiro, mas sua cooperação demarcada pelas conveniências do capital nacional".
E a problemática do conceito de burguesia no Brasil? Caio Prado Jr., por exemplo, não concorda com o conceito de burguesia nacional relacionado ao Brasil. Ele afirma que a "‘Burguesia nacional’ (. . .) não tem realidade no Brasil, e não passa de mais um destes mitos criados para justificar teorias preconcebidas." Seguindo essa linha de raciocínio, Jacob Gorender procura analisar os problemas referentes ao conceito de burguesia. No seu entender, quando se fala em burguesia nacional, trata-se sobretudo de uma classe revolucionária. Portanto, como não ocorreu uma revolução burguesa no Brasil, seria incorreto chamar a burguesia brasileira de nacional. Isso não quer dizer, porém que a burguesia brasileira "se comportou como espectadora passiva dos acontecimentos históricos." Muito pelo contrário. Contudo, o importante é perceber que ela "não precisou realizar uma revolução para se tornar classe dominante principal".
A burguesia brasileira foi um dos principais agentes na formação do modelo brasileiro , juntamente com o Estado e as multinacionais. Peter Evans refere-se a esse grupo como "a tríplice aliança" Este modelo de crescimento, onde se destacaram os referidos agentes, teve no governo Kubitschek um dos principais marcos históricos. A partir de 1964, o regime militar continuou e realizou efetivamente o processo de internacionalização da economia brasileira. Analisando estas questões Carlos A. Afonso e Hebert de Souza concordam que o modelo capitalista no Brasil foi resultado de aliança entre três agentes fundamentais, e resumem assim o papel de cada um:
"1. O capital multinacional, que controla:
a. setores dinâmicos e estratégicos da indústria, agroindústria e seus respectivos mecanismos de exportação
b. setores fundamentais da exploração de recursos naturais:
c. setores mais dinâmicos das novas fronteiras agrícolas (. . .);
d. mecanismos básicos do capital financeiro internacional operando no Brasil, assim como mecanismos internos de captação de recursos de estatais.
2. O capital nacional associado ao capital mundial, que se integra no setor internacionalizado da economia basicamente como elemento complementar e subsidiário do processo produtivo, da rede de comercialização e de serviços.
3. O Estado brasileiro, atuando basicamente como agente disciplinado interno, negociador externo e responsável pela implementação da infra-estrutura industrial e de serviços requerida pelo setor internacionalizado da economia"
Concluindo, este modelo de crescimento, baseado na "tríplice aliança", tem seu preço, que não é interessante para a maioria do povo brasileiro e nem para o país, pois ele "supõe (ou exige) um elevado custo social, desigualdades crescentes na distribuição da renda nacional, desigualdades regionais (. . .), marginalização de boa parte da população em relação aos resultados tangíveis do desenvolvimento econômico, abandono das políticas de bem-estar social, repressão política e social, ao lado do aumento vertiginoso da dívida externa e a sensível perda das margens de negociação política do Estado com o sistema capitalista mundial."
Um esclarecimento: até o momento, evitamos usar conceito desenvolvimento econômico (exceto nas citações, claro), porque trata-se de um conceito problemático. De acordo com Celso Furtado, "a literatura sobre desenvolvimento econômico do último quarto de século nos dá um exemplo meridiano (do) papel diretor dos mitos nas ciências sociais: pelo menos noventa por cento do que aí encontramos se funda na idéia, que se dá por evidente, segundo a qual desenvolvimento econômico, tal qual vem sendo praticado pelos países que lideraram a revolução industrial, pode ser universalizado. Mais precisamente: pretende-se que os standards de consumo da maioria da humanidade, que atualmente vive nos países altamente industrializados, é acessível às grandes massas de população em rápida expansão que formam o chamado terceiro mundo. Essa idéia constitui, seguramente, uma prolongação do mito do progresso, elemento essencial na ideologia diretora da revolução burguesa, dentro da qual se criou a atual sociedade industrial" Em outras palavras, a noção de desenvolvimento econômico, como normalmente é usada, não passa de um mito, de uma criação que é veiculada ideologicamente para atender interesses burgueses.
No nosso entender, o crescimento brasileiro deve ser percebido de acordo com esta perspectiva. Se de um lado, não há como negar, por exemplo, o aumento da taxa de crescimento do Brasil entre 1965 e 1973, por outro lado, está claro também o empobrecimento da maioria da população.

. A QUESTÃO URBANA

O crescimento urbano brasileiro deve ser analisado dentro do contexto de crescimento capitalista adotado pelo país. Vilmar Faria no seu texto "Desenvolvimento, urbanização e mudanças na estrutura do emprego: a experiência brasileira nos últimos trinta anos", conclui que "o processo de desenvolvimento foi acompanhado por um intenso e acelerado processo de urbanização - taxa de crescimento da população urbana de 5,.64 por cento ao ano - que resultou no aumento da taxa de urbanização de 36,2 por cento para 67,7 por cento ao ano, segundo o critério censitário, e de 21,5 por cento para 45,7 por cento ao ano, segundo o critério mais exigente aqui utilizado, havendo ainda, substancial incremento no número de cidades, que passaram de 96 para 482"
Não há como negar, portanto, que o processo de urbanização no Brasil está ligado diretamente ao crescimento econômico do país. Em relação aos últimos anos, significa dizer também que o avanço da economia se deu baseado no intenso processo de industrialização brasileiro, baseado sobretudo no capital internacional.
Se, por um lado, não existe dúvida quanto ao crescimento econômico e urbano no país, por outro lado, de acordo com Lúcio Kowarick, está claro também que este modelo brasileiro foi possível graças ao agravamento das desigualdades sociais. José Álvaro Moisés concorda com esta análise, e afirma que "a formação das principais áreas metropolitanas brasileiras foi acompanhada do surgimento de uma série de contradições sociais e políticas especificas que apareceram na forma das distorções urbanas" conhecidas por exemplo, por cidades como São Paulo, Recife, Belo Horizonte, Salvador e Porto alegre, entre outras". Em suma, o crescimento das grandes cidades gerou contradições e conflitos sociais. Existem muitos trabalhos que analisam esta problemática, mas, o que dizer das cidades de médio porte? Juarez A. B. Rizzieri percebe o crescimento dessas cidades de acordo com o avanço urbano geral no país. De acordo com sua análise, "as cidades brasileiras (. . .) foram desenvolvidas, inicialmente, [ baseadas em ] funções de exportação ligadas à exploração de recursos naturais; o processo de industrialização surgiu posteriormente, beneficiando-se do sistema de transporte de longa distância e concentrando-se nas cidades que desenvolveram serviços e mercados locais, ligados ao comércio exterior. A concentração de atividades econômicas em um número reduzido de grandes cidades foi uma decorrência natural deste processo, que promoveu um desequilíbrio no sistema regional-urbano e na hierarquia das cidades." Por esta razão histórica, a urbanização brasileira, baseada no crescimento econômico industrial, tem-se caracterizado sobretudo pelo desenvolvimento das chamadas grandes metrópoles.
Entretanto, a partir da década de 50, ainda de acordo com Juarez A. B. Rizzieri, apesar de ocorrer o "fortalecimento das áreas metropolitanas na medida que se consolidou um mercado efetivamente nacional," houve também outra mudança fundamental em relação ao desenvolvimento das cidades médias, ao atuarem como pontos eficientes de apoio a um amplo processo de descentralização urbano-industrial"
Este crescimento das cidades de médio porte seguiu o modelo de urbanização das grandes cidades? Não existe nenhum trabalho que analise especificamente esta temática. Entretanto, a imagem normalmente veiculada das cidades de médio porte é a de um espaço limpo e organizado, onde não haveria tantos conflitos como nas grandes metrópoles. Uberlândia é um exemplo claro disto:
"Pode-se ter pensamentos otimistas (...) em muitas cidades brasileiras. Uberlândia, 350.000 habitantes, fincada no Triângulo Mineiro, é apenas uma delas - mas destaca-se fortemente dessa família feliz de aglomerados urbanos por um conjunto de fatores que a transformou numa síntese do bom interior.
(...) No centro de um pólo formado por seis capitais brasileiras, a mais próxima delas Goiânia, a 400 quilômetros de distância, Uberlândia vive fora do círculo de crise econômica e social que hoje se aperta em torno da maioria das cidades do país. Em Uberlândia, é quase inacreditável, não existem mendigos. Em vez de desemprego, ali há vagas em oferta em muitas empresas, inclusive as de construção civil, que desconhecem o garrote que asfixia suas congêneres no Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Salvador e outras capitais. Uberlândia detêm uma das mais baixas taxas de mortalidade infantil do país, distribui água fluoretada a toda população e coleciona índices de segurança que fazem inveja a qualquer centro urbano (. . .). Trigésima quarta cidade brasileira em população, é a décima segunda arrecadação de impostos - um desempenho que deixa para trás dezesseis capitais do país e representa uma média de contribuição por habitante nove vezes superior à brasileira. Além de tudo isso, Uberlândia ainda dá a seus moradores aquele tipo de tranqüilidade que só se encontra no interior"
Esta imagem harmoniosa da cidade será analisada nos capítulos seguintes. No momento, é importante compreender como esta cidade está inserida no contexto brasileiro.
Uberlândia está localizada no Triângulo Mineiro. De acordo com Roberto C. Sampaio, um dos primeiros colonos a ter contato com a região foi o bandeirante Anhanguera, por volta de 1722. "Na época, era bastante difícil penetrar pelo Triângulo, dada a existência de quilombos e de tribos indígenas, bastante selvagens. A região era conhecida como ‘Sertão da Farinha Podre’. De 1730 a 1766, o Governo de Minas tentava, através da força, penetrar pelo Triângulo, mas somente nesta última data é que conseguiu eliminar o Quilombo do Ambrósio e a tribo dos Araxás."
Com o início da ocupação da região, o Governo Goiano também começou a reivindicar este território; apesar das resistências dos mineiros, conseguindo a sua posse durante o período de 1766 a 1816. Após esta data, a região voltou a pertencer a Minas Gerais.
Os primeiros colonos vieram para região atraídos pela "possibilidade de ocupar áreas imensas e férteis." A produção agropecuária ganhou força a partir do declínio da mineração no século XVIII, como resume Roberto C. Sampaio:
"Com a decadência da exploração das minas na segunda metade do século XVIII, que atingiu também as minas do Vale do São Francisco e de Paracatu, a alternativa que se apresentava, para a população desocupada da mineração, era a produção agropecuária.
No início do século XIX, o Triângulo já se encontrava ocupado economicamente em grande parte, e fornecia alimentos para as populações de São Paulo e Rio."
De acordo com Beatriz R. Soares, o Triângulo foi inserido realmente na economia nacional a partir dos seguintes fatores: a construção da Estrada de Ferro Mogiana em 1895, que ligava a região a Campinas, "a construção da ponte Afonso Pena sobre as águas do Paranaíba, em 1909, ligando Minas Gerais a Goiás." e a criação, em 1912, da Companhia Mineira de Autoviação, para a construção de rodovias, que possibilitassem "o escoamento de produtos e o transporte de passageiros entre 32 cidades de Goiás e Minas Gerais." Ocorre "(. . .) a partir daí, o aprofundamento das relações comerciais entre São Paulo e o Triângulo Mineiro, particularmente com Uberlândia, que se especializava na comercialização de alimentos, além de realizar a intermediação entre Minas Gerais, Goiás e São Paulo."
Uberlândia foi fundada em 31 de Agosto de 18888, mas somente a partir de 1924, começaram a surgir algumas industrias na cidade. A principal delas foi a fábrica de tecidos Cia. Industrial do Triângulo Mineiro, mas havia também uma grande produção de charqueadas e ainda algumas "industrias de implementos agrícolas (fabricação de máquinas para engenho de cana para agricultura, telas, serrarias, indústrias alimentícias)."
Na década de 30, com o Governo Vargas, o Brasil conheceu uma período de incentivo às indústrias nacionais, o que fortaleceu ainda mais o crescimento da região Sudeste, principalmente São Paulo, "com a qual Uberlândia se encontra intimamente ligada em suas relações econômicas".
Em 1940 Uberlândia tina 163 industrias (ligadas sobretudo ao setor agropecuário), mas a sua principal atividade econômica nesta época era o comércio, principalmente o ligado à produção de arroz.
Todavia, o grande salto para o crescimento da cidade só ocorreu a partir da década de 50, com implantação do capital estrangeiro no país, basicamente no que dizia respeito às indústrias automobilísticas, o que incentivou a construção de novas estradas (para Uberlândia esse aspecto foi fundamental, pois graças a sua posição geográfica, isso acabou reforçando a sua posição comercial, baseada num entroncamento de rodovias estaduais e federais), somando-se ainda a construção de Brasília e a intensificação do comércio e do setor de serviços da cidade.
Em relação A intensificação do capitalismo no campo, de acordo com Vera Lúcia S. Pessoa, o caso de Uberlândia não foi diferente do restante do Brasil:
"Conclui-se que a modernização da agricultura no município de Uberlândia se enquadra perfeitamente bem no que se convencionou chamar de uma ‘transformação conservadora’ da agricultura, pois sendo os insumos, máquinas e crédito rural privilégios dos grandes proprietários sé estes conseguem realmente uma renda satisfatória das atividades agrícolas e podem melhorar cada vez mais seu padrão sócio-econômico.
Por outro lado, os pequenos proprietários, os trabalhadores assalariados, os arrendatários e parceiros por não terem acesso àqueles bens, permanecem em precárias condições com relação às rendas auferidas, levando como conseqüência o não alcance do desenvolvimento rural. Muitos destes proprietários acabam por desistir da atividade rural, vendendo suas propriedades, geralmente, para o empresário rural.
É neste sentido que a modernização da agricultura tem sido ‘conservadora’, pois ela tem contribuído para manter o estado atual da questão agrária brasileira, ou seja, uma concentração cada vez maior da posse e renda da terra.
Realmente, a situação da agricultura do município de Uberlândia confirma plenamente a quem a modernização da agricultura atende e beneficia"
Além do mais, o crescimento econômico e urbano da cidade, se fez em grande parte, devido ao êxodo rural e também à migração urbana-urbana. Neste sentido, o que ocorreu no município, de certa forma, aconteceu também em outras regiões brasileiras:
"Num primeiro momento, de 1940 a 1970, a migração é predominantemente marcada pela saída das pessoas do campo para as cidades. Num segundo momento, de 1970 à atualidade, a migração se caracteriza pela saída de pessoas de cidades para outras cidades, daí, pode-se dizer que o modelo concentracionista adotado no Brasil pós-60 envolve, também, a concentração de pessoas em determinados espaços do seu território"
A base econômica da região do Triângulo á a agropecuária, e grande parte de suas industrias são direcionadas para este setor - são as chamadas agroindústrias. Uberlândia é a cidade que mais se desenvolve industrialmente na região, e, portanto, este aspecto, junto com comércio, tem um peso fundamental na formação da burguesia da cidade. Mas, que é essa burguesia? Existe conflito entre os setores urbano e rural? Não. A palavra de ordem da burguesia local é união, e a principal instituição que representa seus interesses - a ACIUB - foi durante muito tempo representante também dos setores rurais, como lembrou um empresário local:
"Naquela época, nossa entidade se denominava Associação Comercial, Industrial e Agropecuária de Uberlândia, denominação que possuía desde sua fundação nos idos de 15/10/1933. Éramos em conseqüência uma entidade representativa do Comércio, da Indústria e da Agropecuária. Essas três classes produtoras, como sempre acontece em Uberlândia, trabalhavam sob a égide de sua entidade, coesas e com tenacidade, e prol do desenvolvimento da nossa comunidade"
Existe, portanto, uma união dos setores dominantes da cidade e do campo. Essa característica, porém, não se restringe somente à burguesia. Há também uma aliança de interesses entre os empresários e a classe política - a ACIUB "desmente a dissociação entre empresários e Políticos ( . . . ) porque o desenvolvimento de nossa Uberlândia foi sempre produto de uma associação harmônica entre Políticos e Empresários." Entre os próprios partidos políticos, este discurso de união em nome dos interesses da cidade permanece:
"O vereador Luiz Alberto Rodrigues (do MDB) disse ao Sr. Prefeito Municipal (da ARENA) que sua bancada nesta casa de Leis colocará os interesses de Uberlândia acima de tudo, inclusive do próprio partido e, acima dos interesses de grupos particulares."
Assim, em Uberlândia prevalece a aliança dos setores dominantes urbano e rural, e desses com a classe política e os poderes governamentais.

A RIVALIDADE ENTRE UBERLÂNDIA E UBERABA

OLIVEIRA, Selmane Felipe de. A Rivalidade entre Uberlândia e Uberaba. Cadernos de História, Uberlândia, 4 (4): 89-97, jan./dez. 1993.

(*) Publicado também na internet: http://www.geocities.com/ceturho/oliveira3.htm


A rivalidade entre Uberlândia e Uberaba é outro aspecto ideológico importante, na medida em que é usada pelas burguesias das duas cidades para incentivar o progresso e escamotear as contradições sociais.
Uberlândia foi distrito de Uberaba, mas desde sua emancipação sempre lutou pelo seu próprio crescimento. Aliás, este fato era motivo de críticas e brigas entre as duas cidades:


"Continuando na tribuna o vereador Jeová Abrahão protesta contra declarações do deputado José Marcus Cherém que tentou desmerecer Uberlândia, dizendo que Uberlândia antigamente era distrito de Uberaba, sob o nome de Uberabinha e que se emancipando, conseguiu um ‘razoável progresso’. (. . . ) O vereador Adriano Bailoni Jr. em aparte diz que éramos Uberabinha, mas agora queiram ou não queiram os despeitados Uberlândia é a capital do Triângulo Mineiro." 66


Outra questão polêmica entre Uberlândia e Uberaba foi a criação das faculdade na região. Como vimos anteriormente, 67 Uberaba era considerada o centro cultural do Triângulo na década de 50. Neste período o principal responsável na luta pelas escolas superiores foi o deputado uberlandense Mário Palmério. Contraditoriamente, ele prometia, em campanha, conseguir faculdades para a região, mas, na realidade, as mesmas eram instaladas somente na sua cidade. Essa atitude revoltava os outros municípios triangulinos, acirrando ainda mais a rivalidade entre Uberlândia e Uberaba:


"Uberaba, indiscutivelmente, é cidade que possui o maior número de escolas superiores no Triângulo Mineiro, pelo fato de as outras cidades não possuírem nenhuma.
(. . . ) Com certeza os uberlandenses estão lembrados de um moço simpático, bem falante, acessível que (há uns 3 ou 4 anos) andou por aqui falando para todo mundo que mandaria para nós uma faculdade de medicina e com isto conseguindo um ótimo contingente de votos que o levou facilmente ao Palácio Tiradentes.
Pois este moço que nos prometeu faculdade de medicina em praça pública é o mesmo que a obteve para nossa vizinha e centenária Uberaba. Seu nome é Mário Palmério. Que ninguém esqueça dele."68


Assim, se o deputado Mário Palmério havia sido bem votado em Uberlândia na campanha de 50, justamente pelas promessas de conseguir escolas superiores para a cidade, nos anos posteriores ele passou a ser visto como inimigo dos uberlandenses, na medida em que todos os benefícios eram encaminhados apenas para Uberaba:

"Não ficou só neste engano a ação antiuberlandense de Mário Palmério. Não se contentou ele em mentir e tirar daqui as escolas superiores. Foi mais além, o SAMDU já conseguido para Uberlândia, foi para Uberaba e lá se encontra instalado, graças às suas maquinações no Rio de Janeiro.
Agora, depois de tudo isso, jornais uberlandenses vêm estampando noticiário de que Mário Palmério pretende estender a Uberlândia suas escolas superiores. Mas como? Se ele, o inimigo público nº.1 da cidade Jardim já prometeu isso uma vez e não cumpriu, se ele já nos tomou o SAMDU, melhoramento já autorizado para Uberlândia e o levou para Uberaba? Os uberlandenses têm boa memória. Não esquecerão facilmente os malefícios que Mário Palmério nos causou. Isso é que não. Inimigo público nº.1 da cidade terá a resposta que merece, pois nós não iremos mais na ‘guitarra’ das escolas superiores que ele, malandro velho, tentará nos impingir."69


Portanto, na segunda metade da década de 50, Uberlândia já havia desistido de conseguir as faculdades para a cidade através do Mário Palmério. No seu lugar, foram adotadas outras estratégias para a conquista das escolas superiores, como a eleição de deputados uberlandenses e as campanhas pró ensino superior. No caso da Faculdade de Engenharia, o movimento começou em 1956 e terminou em 1965, com sua instalação oficial na cidade. A importância dessa faculdade está no fato de ser uma escola federal, a única da cidade, que contribuiu, posteriormente, para a criação da universidade e sua federalização.
Entretanto, a Faculdade de Engenharia não foi a primeira escola superior do município. Antes dela, foram criadas em Uberlândia as faculdades de Direito, Filosofia e Ciências Econômicas, além do Conservatório Musical.70 Havia, por parte de Uberaba, muita resistência e críticas às escolas superiores uberlandenses. Isso ficou claro na campanha pela Faculdade de Direito, uma das primeiras a ser instaladas em Uberlândia, quando o presidente do Centro Acadêmico Leopoldino de Oliveira da Faculdade de Direito de Uberaba, Antônio Edson Deroma foi à Belo Horizonte.


"bater-se contra a criação de mais escolas de Direito, pois já temos quatro faculdades em funcionamento, sendo duas em Belo Horizonte, uma em Juiz de Fora e outra em Uberba."71


A resposta uberlandense veio através dos artigos de Antônio Kavamoto - vice presidente da comissão pró-escolas superiores de Uberlândia - e Ruth de Assis - jornalista do Jornal Correio de Uberlândia:

- Antônio Kavamoto: "Uberaba como Uberlândia e Araguari, precisam relegar a segundo plano esse bairrismo que destrói, no invés de construir. De fato, concordamos pois devemos sim estar unidos com um só objetivo de elevar cada vez mais o bom nome de nossa região. Portanto devemos combater todos os elementos que não querem nosso progresso.Assim, caro Antônio Edson Deroma, o seu egoísmo e o seu bairrismo se confunde numa verdadeira escuridão. Aqui ficam as nossa repulsas à estes universitários inescrupulosos, e ao presidente de C.A.L. Oliveira, a nossa profunda tristeza, por querer destruir as palavras sábias e eficientes do Rvo. dr. Antonio Thomaz Filho, que tão brilhantemente defendeu a cultura de nossa região, não só esmagando o sentimento bairrista, mas também como professor e sacerdote, apontando os clamorosos erros e indicando o caminho certo."72
- Ruth de Assis: "Dir-se-ia que a escola de Uberlândia viria a prejudicar a de Uberaba. De modo algum. Boas escola não podem temer concorrências. Do contrário, não poderia haver tantos educandários do mesmo ciclo de estudo no mesmo lugar.
Quando a nossa casa é boa de fato, não nos importa a casa do vizinho ao lado, mesmo parede e meia. Quanto mais a casa do vizinho do outro quarteirão!"73


Outra questão que gerou conflitos entre as duas cidade - e também já foi analisada em outro contexto74 - foi a proposta da criação da Cidade Industrial do Triângulo, e 1959, de acordo com o projeto de um deputado de Governador Valadares. A promessa do governador Bias Fortes de escolher Uberaba como sede para tal empreendimento revoltou os uberlandenses, que convocados pela Associação Comercial uniram-se e lutaram contra a intenção do governador.75
Nesta luta entre as cidades, destacava-se o papel dos políticos, mesmo nos casos das derrotas políticas, pois serviam de "alerta" para o próprio município. Foi assim, por exemplo, respectivamente, em 1959 e 1974:


- " Anunciada a hora do expediente solicitada a palavra o vereador Homero Santos para fazer um protesto contra as injustiças que vêm sendo praticadas contra Uberlândia em benefício da cidade de Uberaba. Informa que ainda agora quando já se tinha como certa que a estação de controle do serviço de micro-ondas, que servirá Brasília seria sediada em Uberlândia, chega a notícia de que mais esse melhoramento irá beneficiar a cidade de Uberaba, graças naturalmente ao trabalho mais eficiente de seus políticos."76

- ( O vereador Adriano Bailoni Júnior) "Continuando expressa o seu protesto pelo fechamento em nossa cidade do Serviço Público de Telex e diz, também de seu descontentamento pela transferência, para a cidade de Uberaba, mesmo temporariamente de nosso serviço de psicotécnico para exame de motoristas. Continuando, diz que em Uberaba existe um escalão de políticos de alto gabarito, que trabalham e vão canalizando para lá todas as melhorias que poderiam estar em nossa cidade;"77


Assim, as derrotas políticas eram analisadas como injustiças - afinal, Uberaba "tomava" o que pertencia por "direito" a Uberlândia - e também como falta de competência dos políticos uberlandenses. Diante de qualquer conquista, a cidade era convocada a unir-se e lutar, para não perder para Uberaba. Foi assim também com a questão do ensino:

(O vereador Urquiza A. F. Alvim) "(. . . ) comenta que está para ser instalada no Triângulo Mineiro, a Delegacia Seccional de Ensino. Os políticos de Uberaba já se movimentaram para levar para aquela cidade a referida delegacia. Uberlândia não pode ficar para trás em relação ao ensino. Conclama a todos para que se unissem e trabalhassem no sentido de trazer a Delegacia Seccional de Ensino para Uberlândia."78


A problemática da rivalidade foi tão marcante, que chegava-se a questionar os dados oficiais sobre o crescimento das duas cidades, como ocorreu com o Censo de 1970, quando o vereador Natal Felice colocava em dúvida os dados referentes ao censo de Uberlândia, que na realidade "ultrapassa em muito o progresso da vizinha cidade." 79 Do lado de Uberaba, eram levantadas suspeitas de "que o Juiz de Uberlândia fraudou o alistamento eleitoral", como comentou e protestou o vereador uberlandense Jeová Abrahão, dizendo que sua cidade tinha "um colégio eleitoral maior que o de Uberaba desde as eleições passadas."80
Outro ponto que gerou conflito foi a administração do uberlandense Rondon Pacheco enquanto Governador do Estado de Minas Gerais. De fato, o que ocorreu foram reclamações dos deputados uberabenses de que Rondon Pacheco estaria beneficiando somente Uberlândia. Foi o caso da instalação da fabrica da Coca-Cola em Uberlândia - com os protestos do deputado uberabense Sylo Costa81 - e ainda a entrevista de outro deputado de Uberaba, Euripedes Craide, que acusa o governador de estar "adotando uma política de regionalismo, levando benefícios para Uberlândia, que é sua terra natal, em detrimento de Uberaba, marginalizada pelo govêrno."82 Do lado uberlandense, a defesa do governador:

"Nem acertou Eurípedes Craide dizendo que Rondon Pacheco faz política de regionalismo. Rondon Pacheco sempre foi um benfeitor do Triângulo Mineiro. Rondon Pacheco no Palácio da Liberdade, é o próprio Triângulo Mineiro, pela primeira vez no governo de Minas. Errou, foi injusto e leviano ao dizer que Rondon sé está fazendo benefícios para Uberlândia. Desde o tempo em que era deputado federal trabalhou pela região. Deu muita coisa a Uberaba. Como a Uberlândia, a Ituiutaba, a Araguari, a Tupaciguara. Ousamos afirmar que todas as estradas asfaltadas desta região foram obtidas graças a trabalhos de Rondon Pacheco. Para citar apenas uma conquista. Em nome de uma pretensa ‘rivalidade’, Craide atacou o governador Rondon Pacheco. Parece que não tinha nada o que falar e foi mexer num ponto intocável. Porque se existe um homem imparcial, um político honesto e inatacável, este homem é o sr. Rondon Pacheco. ele é ‘tão contra’ Uberaba que nomeou subsecretário de Agricultura de Minas Gerais o uberabense Hildo Totti."83


Em 1973 aconteceu mais um atrito. Desta vez o motivo foram as críticas do jornal Correio de Uberlândia à TV Uberaba. Entre outras coisas, o jornal dizia que o comércio de o povo de Uberaba não apoiavam seu próprio canal de TV, e que em virtude do corte da metade de seus funcionários e "a redução drástica de seu horário de funcionamento", ficava claro "que a televisão de Uberaba caminha para um final melancólico, bem diferente daquele que se esperava quando de sua inauguração."84 Como resposta, os jornais uberabenses Lavoura e Comércio85 e Jornal da Manhã, juntamente com a Câmara Municipal de Uberaba, saíram em defesa de sua cidade, questionando a reportagem do Correio de Uberlândia e expondo "as várias iniciativas da TV Uberaba, que demonstram sua vontade de progredir e crescer."86 No final, um pouco constrangido, o jornal uberlandense afirmava ter "consciência de um dever cumprido" e desejava sucesso para o canal de TV uberabense, concluindo contraditoriamente - já que no primeiro artigo acusava a TV Uberaba de caminhar em marcha ré, devido, entre coisas, ao bairrismo dessa cidade - que


"(. . . ) o mais importante de tudo, foi que todos mostraram seus pontos de vista, dentro de uma cordialidade maravilhosa, que não deu lugar, em nenhum instante, a rivalidade, e mais do que isso, demonstrou que, uberlandenses e uberabenses sabem lutar juntos por interesses comuns."87


Afinal, depois de tantos conflitos, seria realmente possível negar a rivalidade entre Uberlândia e Uberaba? Certamente que não. A rivalidade existe, e mais do que isso, tornou-se um importante elemento ideológico, que serve tanto para incentivar o próprio crescimento como também para escamotear as contradições sociais. Os conflitos entre as classes são "transferidos" para a "guerra" entre as cidades. Uberlândia, seu povo, suas diferenças, suas classes sociais, deve unir-se para não perder para Uberaba, e vice-versa. A ideologia burguesa ora assume a rivalidade - sobretudo internamente, para a própria cidade - ora a nega. Assim, é possível ver, de um lado, uma propaganda dos Irmãos Garcia, concessionária Chevrolet em Uberlândia, negando a rivalidade: "Isso não é conosco! (. . . ) Jamais estivemos disputando com ninguém um lugar;"88 e de outro lado, um manifesto dos comerciantes do município sobre as mudanças no trânsito, não apenas assumindo o lado bairrista, como colocando-o como um aspecto significativo do discurso burguês:

"Passo as suas mãos, um manifesto assinado por aproximadamente 150 comerciantes de Uberlândia. Peço que ao ler nossas proposições, as entenda pelo lado humano, bairrista e comercial do povo desta terra, que sempre soube construir e dignificar nosso progresso, hoje espalhado aos quatro cantos na Nação.
(. . . ) Referi-me ao lado bairrista, porque como a maioria de nosso povo sou uberlandense mesmo que houvesse nascido em Uberaba. E por esta razão jamais idealizaria um movimento (para corrigir pequenas coisas em benefício de outras grandes) que não fosse pelo respeito ao nome, a tradição, a dignidade e a responsabilidade de uma cidade que leva o nome de Uberlândia: a maior e mais bela de todas as outras do interior Brasileiro, que conta hoje com aproximadamente 270.000 habitantes."89


A problemática da rivalidade chegou a atrapalhar uma das grandes lutas e reivindicações da região: a separação do Triângulo de Minas Gerais.90 Havia união: todos queriam separar-se de Minas Gerais e constituir-se num Estado independente, mas onde seria a capital? Nas campanhas separatistas, oficialmente essa questão não era muito analisada, para evitar atritos entre as cidades triangulinas, sobretudo, claro, entre Uberlândia e Uberaba.
Entretanto, alguns políticos tentavam solucionar este problema, incluindo uma terceira cidade para ser a capital do Triângulo. Essa era a postura do ex-prefeito de Uberaba, Hugo Rodrigues da Cunha, que dizia que a capital poderia ficar em Barretos, área turística de Araxá."91
A proposta do ex-prefeito, porém, não agrada de fato nem aos uberlandenses nem ao uberabenses. O sentimento bairrista era mais forte, o que reforçava a rivalidade entre os dois municípios. Aliás, a rivalidade neste contexto já era percebida em 1948, quando o jornal Diário de São Paulo analisou a separação do Triângulo:


"A velha rivalidade existente entre Uberaba e Uberlândia, as duas principais cidades do Triângulo Mineiro, tem sido o maior obstáculo às pretensões separatistas do antigo Sertão Farinha Pobre. Tanto Uberaba como Uberlândia, como os demais municípios mineiros, possuem fortes razões para desejar a independência do Triângulo, encaixando assim mais uma estrelinha na bandeira do Brasil. Mas acontece que, criando-se um novo Estado, criar-se-ia conseqüentemente uma nova capital .... e aí é que está o busílis. Uberaba, de forma alguma abriria mão desta prerrogativa; Uberlândia tampouco. Ambas as cidades julgam-se dignas do pomposo título e das vantagens de capital. Uberaba apóia-se em razões históricas, Uberlândia em razões futuras; e assim, ambas temem a realização do velho sonho, na expectativa de que uma delas sairá mais beneficiada do que a outra."92


Além da luta pela separação do Triângulo - que unia as cidades triangulinas, apesar do problema da capital - , ocorreram momentos - raros, com certeza - em que a rivalidade era colocada num segundo plano. Um desses momentos foi a campanha pelo Nobel da Paz para o uberlandense Chico Xavier, que contou com o apoio de Uberlândia.93 Outro momento foi a eleição de Tancredo Neves como governador de Minas Gerais, que contou com um acordo entre prefeitos do PMDB de Uberlândia e Uberaba, para que não houvesse pressões na escolha dos cargos do governo, que prejudicasse uma ou outra cidade. Essa tentativa dos prefeitos do PMDB de preservar os interesses do partido, demonstrava que a rivalidade entre as duas cidades não apenas existia, como era um problema a ser enfrentado pelo próprio governador. Em outras palavras, por mais que o PMDB da região - como em todo o Brasil - pregasse em campanha um projeto de mudança, de renovações, de fato, questões antigas e problemáticas, como a rivalidade entre Uberlândia e Uberaba, não deixavam de existir.
Em suma, o bairrismo permanecia, independente dos partidos políticos e de seus projetos. Poderiam ocorrer propostas de conciliação ou mesmo políticas onde se tentasse anular a questão da rivalidade, mas isso, na prática, através da própria negação somente reconhecida, quando não reforçava o sentimento bairrista.
Concluindo, a rivalidade entre Uberlândia e Uberaba, assim como acontece com outras cidades e regiões, é um aspecto ideológico significativo, pois confunde os projetos da burguesia com os interesses da cidade, e na medida em existe um "inimigo" - a cidade rival - as diferenças e as contradições internas são colocadas em um segundo plano, em nome de uma suposta união para o "bem comum" do município. Portanto, o que parece uma "guerra" entre cidades, é, de fato, mais um elemento ideológico do discurso. Discurso que, de um lado, dá sentido geral aos interesses particulares da classe empresarial e, de outro, escamoteia, sem dúvida alguma, as contradições sociais inerentes ao desenvolvimento capitalista.

COMEMORAÇÕES NACIONAIS O CASO DAS DATAS CÍVICAS

OLIVEIRA, Selmane Felipe de. Comemorações nacionais: o caso das datas cívicas. In.: Minas Gerais na Ditadura Militar: Lideranças e práticas políticas (1971-983). Tese de Doutrado. São Paulo, PUC, 1999, p. 112-129.

Publicado também no livro "Minas Gerais na Ditadura Militar" (Rápida Editora) e na internet no site: http://www.geocities.com/ceturho/oliveira8.htm

Quando se tratava do passado, nem sempre a postura das lideranças mineiras da década de 70 - Rondon Pacheco, Aureliano Chaves e Francelino Pereira - era de crítica e oposição. A reverência às datas cívicas reforçava esta premissa. Neste sentido, o discurso das lideranças mais uma vez estava de acordo com o regime militar, pois nesta época se insistia em temáticas nacionalistas e no culto aos símbolos nacionais, por isso, aliás, ocorreu a criação de disciplinas nas escolas como Moral e Cívica e OSPB.

As comemorações das datas cívicas eram utilizadas para confirmar o passado (ou a construção de um passado...). Tratava-se de inventar tradições. Esta expressão foi utilizada por Eric Hobsbawm. De acordo com este autor:

"Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado."

Esta preocupação com o passado está associada ao próprio exercício do poder.
Ou seja, de acordo com Baczko, "o poder deve apoderar-se do controle dos meios que formam e guiam a imaginação coletiva. A fim de impregnar as mentalidades com novos valores e fortalecer a sua legitimidade, o poder tem designadamente de institucionalizar um simbolismo e um ritual novos."

Neste sentido, uma das datas cívicas mais comemoradas foi o 21 de Abril - Tiradentes -, por se tratar de um mito mineiro que tinha projeção nacional. José Murilo de Carvalho mostrou em seu livro A Formação das Almas como foi o processo de construção de imagens deste mito a partir da Proclamação da República, "cuja finalidade era atingir o imaginário popular para recriá-lo dentro dos valores republicanos."

Importantes fatores levaram a escolha de Tiradentes como um dos símbolos da República. Primeiro, tratava-se da questão geográfica. Ou seja, "Tiradentes era o herói de uma área que, a partir da metade do século XIX, já podia ser considerada o centro político do país - Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, as três capitanias que ele buscou, num primeiro momento, tornar independentes." Mais do que isso, a associação de um mito cívico - afinal, tratava-se de um patriota que lutava pela independência da nação - com o apelo religioso garantia a imagem de Tiradentes uma aceitação popular. Aliás, a imagem das pinturas que procuravam representá-lo como Cristo estava baseada em alguns elementos:

"O fato de não ter a conjuração passado à ação concreta poupo-lhe ter derramado sangue, ter exercido violência contra outras pessoas, ter criado inimigos. A violência revolucionária permaneceu potencial. (...) A violência real pertenceu aos adversários. Foi vítima não só do governo português e de seus representantes, mas até mesmo de seus amigos. Vítima da traição de Joaquim Silvério, amigo pessoal, o novo Judas. E vítima dos outros companheiros da conspiração, que, como novos Pedros, se acovardaram, procuram lançar sobre ele toda a culpa. Culpa que ele assumiu de boa vontade. (...) Explicitamente, como Cristo, a quem quis imitar na nudez e no perdão ao carrasco, incorporou as culpas, as dores e os sonhos dos companheiros e dos compatriotas."

A partir destes termos - revolucionário, culpa, vítima, perdão - poderia se construir um mito que servisse para a integração da nação, mas que representava também libertação. Em outras palavras, "a tentativa de transformar Tiradentes em herói nacional, adequado a todos os gostos, não eliminou totalmente a ambigüidade do símbolo. O governo republicano tentou dele se apropriar, declarando o 21 de abril feriado nacional e, em 1926, construindo a estátua em frente ao prédio da Câmara. Os governos militares recentes foram mais longe. Lei de 1965 declarou Tiradentes patrono cívico da nação brasileira e mandou colocar retratos seus em todas as repartições públicas. Durante o Estado Novo, foram representadas peças de teatro, com apoio oficial, exaltando a figura do herói. (...) Mas a esquerda também dele não abriu mão, desde os jacobinos até os movimentos guerrilheiros da década de 70, um dos quais adotou seu nome."
Em suma, apesar da figura de Tiradentes ser ambígua, e portanto ser utilizada de diferentes maneiras, seja pela direita ou pela esquerda, foram os governos e as elites que mais se preocuparam em reafirmá-la enquanto símbolo da nação brasileira, pois havia uma preocupação em controlar e usar os chamados símbolos nacionais. Em outras palavras, utilizando uma citação de Bronislaw Baczko, podemos perceber a origem dos símbolos em uma comunidade e a atuação das elites:

"O nascimento e difusão dos signos imaginados e dos ritos coletivos traduzem a necessidade de encontrar uma linguagem e um modo de expressão que correspondam a uma comunidade de imaginação social, garantindo às massas, que procuram reconhecer-se e afirmar-se nas suas ações, um modo de comunicação. Por outro lado, contudo, esse simbolismo e esse ritual fornecem um cenário e um suporte para os poderes que sucessivamente se instalam, tentando estabilizar-se. Com efeito, é significativo que as elites políticas se dêem rapidamente conta do fato de o dispositivo simbólico ser um instrumento eficaz para influenciar e orientar a sensibilidade coletiva, em suma, para impressionar e eventualmente manipular as multidões."

Neste sentido, entende-se porque a ditadura militar deu especial atenção a confirmação do mito de Tiradentes. Aliás, os governos mineiros tiveram uma contribuição importante neste aspecto. Para o governador Rondon Pacheco, "o legado cívico deixado pelos inconfidentes - a unidade e a grandeza de um Brasil livre e soberano - não ficou perdido. Hoje, sob outra forma, reúne os mineiros na construção dos objetivos nacionais permanentes."
Este governo, através dos editoriais do Minas Gerais, procurava fazer uma associação entre o 21 de Abril, o 7 de Setembro (Semana da Pátria) e o 31 de Março (movimento de 64): "A conquista da Independência não deve ser restrita a uma data, pois resultou de um processo que se desenvolveu durante vários anos, em diferentes áreas e sob diversas motivações de comportamento. Muitos foram os agentes e os seus instrumentos de conquista. Marcam, porém, o episódio - além do sacrifício de Tiradentes - a data de 7 de Setembro e a figura insólita de Pedro I. E dentro desse espírito, mostrar que ontem, como hoje e amanhã, o Brasil é um só e unido País, desde as inspirações sonhadoras dos Inconfidentes ou dos heróis da Independência, até os salvadores da República, que em março de 1964 impediram a comunização do País e já agora estruturam a definitiva emancipação econômica de nosso povo."
Tanto a fala de Rondon Pacheco como o editorial do Minas Gerais reforçavam a idéia de Tiradentes como o salvador da pátria. A sua figura era muito utilizada nos discursos dos políticos do Estado, por que, na visão deles, tratava-se de um herói nacional que era mineiro. Nesta perspectiva, isto daria autoridade para Minas falar em nome do Brasil. No editorial do Minas Gerais, havia ainda uma associação importante entre três datas: 21 de abril, 7 de setembro e 31 de março. Elas simbolizariam a independência do Brasil. O uso de termos como sonhadores, heróis e salvadores servia para reforçar esta construção de mitos. Relacionar o 31 de março com as outras datas era uma tentativa de colocar o movimento de 64 neste patamar.
O governo Aureliano Chaves reforçava estas associações, acrescentando outro símbolo - a Açominas - que, no seu entender, significava a "liberação econômica". De acordo com o seu discurso:

"E é nessa atualidade que se confundem os ideais de Tiradentes com os da Revolução de Março, também esta procurando libertar o País e assegurar o progresso material para o povo. Coincidentemente, foi de Minas que partiu o brado de emancipação, tanto em 1789, como em 1964, quando novamente o nosso Estado liderou o movimento de luta nacionalista contra a infiltração ostensiva de ideologias estranhas a nossa formação. E já agora, quando se busca a reafirmação de propósitos de independência econômica de Estado, de novo surge a lembrança dos inconfidentes, não só na identidade desses propósitos, como até mesmo nas sugestões geográficas, tanto se aproximam a histórica Vila Rica do passado e Ouro Branco da futura implantação da AÇOMINAS - Símbolo maior de nossa liberação econômica."

Aureliano Chaves enfatizava, portanto, que tudo começou em Minas - tanto em 1789, como em 1964. Mais uma vez Minas era colocada como libertadora, como liderança. Mas se Minas foi capaz de libertar o Brasil, ela teria que cuidar de sua independência econômica. Neste ponto, tentava-se elaborar um novo mito, a Açominas, que era colocada pelo governador mineiro como símbolo maior de nossa liberação econômica. O termo símbolo não era usado ao acaso. As datas cívicas, na verdade, eram marcos políticos, econômicos, criados para representar (simbolizar) uma suposta unidade nacional. Para serem aceitos, estes marcos eram associados às figuras dos heróis (outra construção). Sobre estas temáticas, José Murilo de Carvalho fez algumas considerações interessantes:

"A República brasileira, à diferença do modelo francês, e também do modelo americano, não possuía suficiente densidade popular para refazer o imaginário nacional.
(...) Só quando se voltou para tradições culturais mais profundas, às vezes alheias à sua imagem, é que conseguiu algum êxito no esforço de se popularizar. Foi quando apelou à Independência e à religião, no caso de Tiradentes; aos símbolos nacionais, no caso da bandeira; à tradição cívica, no caso do hino."

Como vimos, a aceitação do mito de Tiradentes estava associada também à questão da religião, ou seja, de acordo com José Murilo de Carvalho, o "apelo à tradição cristã do povo (...) facilitava a transmissão da imagem de um Cristo cívico." Relacionada a esta imagem, estaria a própria idéia de sacrifício. Aureliano Chaves, em um dos seus discursos, abordou este tema:

"Tiradentes é um símbolo, sem deixar de ser uma realidade. Símbolo, quando se deixa sacrificar pela sua terra, realidade, quando nos transfere a inesquecível proclamação que constitui, a um tempo, aviso e convite: ‘Se todos quiséssemos, poderíamos fazer do Brasil uma grande Nação’. Ora, de Minas, que se orgulha de ser uma síntese do Brasil, partiram sempre os movimentos generosos de recomposição do bem comum, especialmente quando ameaçado."

Quando Aureliano Chaves se referia a Tiradentes como uma realidade, ele estava querendo mostrar que o símbolo só teria utilidade se ele fosse aplicado naquele momento. Nesta perspectiva, a busca do passado teria sentido para justificar o presente e garantir o futuro. Aureliano Chaves reivindica para Minas este papel, e por isso a coloca como a síntese do Brasil. Os termos, de um lado, sacrifício e ameaça, e de outro, orgulho, generosidade e proclamação, serviam para dar um caráter de grandiosidade à trajetória dos mineiros.

Francelino Pereira reafirmava estes discursos. As datas cívicas continuavam a ser referências importantes no seu governo. Em relação ao 21 de Abril, ele afirmou : "A Nação brasileira, com os olhos voltados para Minas, contempla hoje seu passado. Não apenas para comemorar o heroísmo de um grupo de homens, mas para refletir sobre o seu projeto histórico, que é a criação de todo um povo. O cenário desta praça nos convida à meditação, o exemplo dos Inconfidentes liberta a nossa imaginação. A presença do povo nos estimula e nos conforta. Meditemos, pois, sobre as lições do passado e sobre as graves opções do presente. E nenhum momento poderia ser mais oportuno do que este."

Nesta perspectiva, na medida em que Minas representava o passado, ela poderia se colocar como elo de ligação deste com o presente e o futuro. A nação olhava para Minas para ver o seu passado, identificado com heroísmo, liberdade. Este era , de acordo com o governador mineiro, o sentido daquela comemoração, feita em um lugar público - a praça - com a presença do povo. Este lugar não era escolhido por acaso. De acordo com Baczko, a "praça, uma vez vazia, tornou-se um lugar privilegiado do espaço projetado sobre a cidade real. Integrando-se no ritual das festas revolucionárias e símbolo do começo, ainda hoje ela é de preferência escolhida como ponto de formação e partida dos cortejos festivos que atravessam a cidade."

A referência de Francelino Pereira à praça era importante para legitimar o regime, pois se passava a idéia de que a política estava no seu lugar - no espaço público - e não era feita somente em gabinetes e nos quartéis. Neste momento o povo conduz para a idéia de nação, só neste sentido há uma identificação de praça e povo, o que seria diferente, do ponto de vista dos militares, quando o povo ocupou as ruas na campanha das Diretas Já para reivindicar eleições diretas para a presidência da República (estas manifestações eram percebidas, na visão do regime, como um risco para a ordem, como uma questão de segurança nacional, daí a tentativa - frustrada - de associá-las à infiltração comunista).

Neste ponto de vista, os políticos e militares eram mostrados como líderes da nação. Portanto, havia a necessidade de se exaltar também o 31 de março, como podemos perceber em outro discurso de Francelino Pereira:

"Vale recordar que a Revolução teve por fundamento, basicamente, resgatar o Brasil de um Estado de pré-insolvência econômica e de grave crise social e política, para, em seguida, reorientar a organização nacional em termos de modernização, em todos os seus aspectos - econômico, social, político, tecnológico e tudo mais.
(...) O desenvolvimento econômico aí está, à vista de todos. Somos, hoje, 15 anos depois da Revolução, a nona economia ocidental, com o Produto Interno um pouco além de 160 bilhões de dólares; renda ‘per-capta’ superior a 1.600 dólares, que se contrasta a uma situação anterior, caracterizada por intoleráveis distorções econômicas, sociais e políticas."

Este discurso foi feito em abril de 1979, antes do agravamento da crise econômica e sobretudo dos conflitos sociais (características que marcariam o seu governo em Minas Gerais). Comemorar a revolução como sucesso econômico tornou-se prática comum dos políticos depois da fase do "Milagre Brasileiro". Isso mudaria no início da década de 80, quando já não daria mais para disfarçar o descontrole inflacionário e o problema da dívida externa.

Os representantes da Assembléia Legislativa do Estado também participavam das comemorações das datas cívicas. O seu presidente, o deputado João Ferraz, em relação ao aniversário da revolução, afirmou:

"O simbolismo desta solenidade, honrada com a presença dos dignos representantes dos Poderes Executivo e Judiciário, das Forças Armadas e de altas autoridades, destaca a união de todos em torno do general Geisel.
Aqui, não há Governo e Oposição, ARENA e MDB, porque somos, antes de tudo, a própria expressão do povo mineiro.
Minas não divide; Minas quer unir.
Minas não reivindica; Minas quer ajudar.
Foi assim na arrancada gloriosa de 31 de março de 1964.
Será Assim hoje e sempre."

No discurso do presidente da Assembléia, Minas aparecia unida e benevolente. Por isso, ela teria tido um papel de destaque no movimento de 64. Ele chegava a dizer que Minas não reivindica, contrariando o próprio discurso dos políticos mineiros, que procuravam se mostrar como grandes negociadores. Chamava a atenção ainda a referência à oposição, tentando mostrar que em Minas os interesses do Estado estavam acima da questão partidária.

O 21 de abril também era lembrado pela Assembléia Legislativa em solenidades que contavam com a participação de deputados da ARENA e do MDB. De acordo com o presidente da Assembléia , o deputado João Ferraz:

"É (...) na consagração do espírito da Inconfidência, ungido no sangue derramado pelo supremo sacrifício de Tiradentes, que devemos fortalecer os ideais de liberdade, de amor e de justiça, essenciais à preservação da paz, da unidade, da segurança e do progresso da família brasileira."

Em suma, os deputados mineiros (inclusive os da oposição) reforçavam esta postura de culto às datas cívicas e aos seus símbolos, reafirmando, como neste discurso do presidente da Assembléia Legislativa, a idéia de sacrifício de uma maneira ainda mais dramática - ungido no sangue derramado - como um elemento necessário para a preservação da paz. Este último termo vem associado a outros conceitos muito utilizados pelas lideranças do Estado. Conceitos estes que estavam ligados à própria idéia positivista de república veiculada no Brasil (o progresso), ao caráter imposto pelos militares à sociedade brasileira (a segurança) e ao elemento chave do discurso mineiro para falar em nome do país (a unidade). Tratava-se, através destes discursos, de tentar colocar os valores mineiros como fundamentais para, utilizando o conceito de Bronislaw Baczko, a elaboração do imaginário social brasileiro. Qual era o sentido disto? O exercício do poder, afinal,

"o imaginário social informa acerca da realidade, ao mesmo tempo que constitui um apelo à ação, um apelo a comportar-se de determinada maneira. Esquema de interpretação, mas também de valorização, o dispositivo imaginário suscita a adesão a um sistema de valores e intervém eficazmente nos processos da sua interiorização pelos indivíduos, modelando os comportamentos, capturando energias e, em caso de necessidade, arrastando os indivíduos para uma ação comum."

Associada às comemorações cívicas, o uso da propaganda política oficial foi outro elemento importante para reforçar os valores do regime militar. Órgãos como a Aerp (Assessoria Especial de Relações Públicas) e ARP (Assessoria de Relações Públicas) se encarregariam de tal missão. A Aerp foi criada em 1968 e a sua principal temática "era a emergência do Brasil como uma sociedade dinâmica original, tendo como pano de fundo o rápido crescimento econômico, então de 10 por cento ao ano. (...) Uma das temáticas mais eficientes da Aerp consistiu em associar futebol, música popular, presidente Médici e progresso brasileiro. Médici era excelente material para tal campanha. Adorava posar de pai e era fanático por futebol. (...) A equipe de RP do governo não perdeu tempo em colher todos os dividendos possíveis da conquista do tricampeonato mundial de futebol. A popular marchinha ‘Pra Frente Brasil’ composta para a seleção brasileira, foi oficializada e era tocada em todos os eventos públicos."

A propaganda política do governo desenvolveu slogans - como o "Brasil - ame-o ou deixo-o" - e campanhas que visavam reforçar o discurso do governo. Uma estratégia utilizada era falar do futuro. Falava-se na época em "Brasil Potência" e uma das principais campanhas foi exatamente "Este é um país que vai para frente" de 1976. Referir-se ao futuro significava falar em esperança (no ponto de vista do regime). Esta temática, aliás, está associada à própria constituição de um imaginário social, ou seja:

"Uma das funções dos imaginários sociais consiste na organização e controle do tempo coletivo no plano simbólico. Esses imaginários intervêm ativamente na memória coletiva, para a qual, (...) os acontecimentos contam muitas vezes menos do que as representações a que dão origem e que os enquadram. Os imaginários sociais operam ainda mais vigorosamente, talvez, na produção de visões futuras, designadamente na projeção das angústias, esperanças e sonhos coletivos sobre o futuro."

Com suas campanhas, mesmo as chamadas de utilidade pública, como a do Sugismundo - tratava da "limpeza urbana [em] setembro de 1972" -, a propaganda política reforçava o próprio discurso da Doutrina de Segurança Nacional, baseada no binômio segurança e desenvolvimento. A idéia passada nas mensagens era também de ordem e disciplina, termos próprios dos militares.
Os órgãos de propaganda do governo divulgavam ainda as datas cívicas e os símbolos nacionais. De acordo com Carlos Fico:

"As campanhas cívicas da Aerp/ARP foram, por assim dizer, as manifestações mais típicas de propaganda do período. Tratavam da fixação de heróis - como Caxias, Santos Dumont, Tiradentes e Rui Barbosa - e buscavam, através dos filmes, enaltecer ‘fatos históricos’ nacionais - como o Descobrimento e a Independência, velhos marcos balizadores da cronologia oficial criada pelo IHGB no século XIX. A difusão dos símbolos nacionais e a popularização das comemorações do Dia da Independência foram as grandes metas desse tipo de propaganda."

Entretanto, as comemorações não se limitaram aos mitos nacionais. Em Minas Gerais, outras datas eram lembradas e diziam respeito especificamente ao empresariado, como era o caso do Dia do Empresário Comercial. Foi neste tipo de solenidade que os governadores Rondon Pacheco e Aureliano Chaves foram homenageados com o título "Personalidade do Ano - Setor Público". No seu discurso de agradecimento, Rondon Pacheco afirmou: "O comércio interno e externo iniciou sua expansão e foi o modelador da nova sociedade brasileira. Dou relevo a esses aspectos para salientar, neste Dia do Comerciante, o quanto posso esperar da atividade comercial relativamente ao desenvolvimento integrado de Minas Gerais, objetivo maior de meu governo."
O importante, tanto no que dizia respeito ao conteúdo do discurso como em
relação ao ato da homenagem, era que havia a disposição de mostrar uma imagem de união. Não foi por acaso que o governador usou a expressão desenvolvimento integrado e colocou o comércio como um elemento importante para este crescimento.
Aureliano Chaves utilizou outros termos em seu agradecimento:

"Em nenhum momento da sua história, a Associação Comercial de Minas Gerais omitiu-se, quando os problemas que diziam respeito ao progresso, ao desenvolvimento do nosso Estado, tornando-se necessária a palavra das lideranças empresariais, peculiarmente das lideranças do setor do comércio." Em suma, para o governador: "Não há necessidade de dizer, porque aqui já foi dito com muita propriedade, que não se escreve a história de Minas Gerais sem se reservar um significativo capítulo à Associação Comercial do nosso Estado."

Basicamente, Aureliano Chaves disse a mesma coisa que Rondon Pacheco. Contudo, ele enfatizou o papel das lideranças, destacando principalmente a própria entidade. A associação da trajetória da ACM com a história de Minas Gerais tinha dois significados. Primeiro, estar relacionado ao passado do Estado, do ponto dos vista dos políticos, era motivo de orgulho, pois muitas vezes Minas era identificada com a sua tradição. Em segundo lugar, esta afirmação revelava também que, nesta perspectiva, os agentes da história eram as próprias lideranças. Outro termo importante utilizado por Aureliano Chaves foi a omissão. Algumas vezes, os mineiros são acusados de serem omissos, de não enfrentarem diretamente os confrontos. Com aquela frase, Aureliano Chaves tentava dizer o contrário.

Francelino Pereira mantinha a postura de elogios ao empresariado. Na comemoração de outra data importante para as lideranças mineiras, o Dia da Indústria, ele também destacou o papel das lideranças, utilizando termos positivos como diálogo e consciência, ou seja, nas suas palavras:

"(...) neste momento de transição econômica, social e política, é com grande satisfação que os mineiros vêem a atuação desta importante entidade de classe, que é a Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais, comemorando a Semana da Indústria com um amplo debate sobre as mais graves questões do momento. Aberta para o diálogo com a comunidade - através de suas lideranças mais expressivas - a Federação das Indústrias realiza aquilo que a Nação espera dos seus empresários: a consciência do papel social que lhes cabe representar neste País, agora e no futuro."

Em suma, além de reverenciar as datas cívicas (os símbolos nacionais, etc), os governadores mineiros faziam questão de participar das solenidades do empresariado. Nos seus discursos, era enfatizada a temática do desenvolvimento e a importância dos empresários (sobretudo as suas entidades de classe) neste processo. Mas e o trabalhador? De fato, não se poderia afirmar que este agente social era uma figura constante nos discursos das lideranças mineiras. Normalmente o desenvolvimento era mostrado como resultado da ação e da aliança do Estado e do empresariado. Basta lembrar o discurso do governador Rondon Pacheco na Mensagem à Assembléia Legislativa, na avaliação do ano de 1972:

"Para toda essa gama de realizações, contou o nosso Governo com o constante apoio do preclaro Presidente Médici, bem como a construtiva cooperação da Egrégia Assembléia Legislativa, das autoridades federais, dos organismos empresariais nacionais e estrangeiros e da equipe de trabalho que dá suporte à ação governamental, realizada em atmosfera de perfeita harmonia entre os Poderes do Estado."

Contudo, havia um momento em que o trabalhador era lembrado: o 1o. de Maio. Nesta data, falava-se da importância do trabalhador e sobretudo do seu papel cívico para com a sociedade, como podemos perceber em outro discurso de Rondon Pacheco, no qual ele afirmava: "Como Governador de Minas Gerais, em meu nome, no do Governo e do povo mineiro, levo, pois, ao Trabalhador a nossa mensagem de compreensão, apoio, estímulo e aplausos. Sabemos que no processo de desenvolvimento econômico e social em curso no território estadual, o Trabalhador desempenha uma parcela importante e significativa na totalidade dos programas e dos projetos. É assim, um participante a quem todos fazemos justiça e para quem na data que lhe é universalmente dedicada, levamos a nossa palavra de louvor e de reconhecimento."

Para o governador mineiro, era necessário fazer justiça, como se eles - as lideranças mineiras - tivessem esquecido do trabalhador e não omitido propositalmente a sua figura na construção da imagem progressita de Minas. Mesmo assim, apesar de reconhecer que o Trabalhador desempenha uma parcela importante no desenvolvimento, o governador destacava que ele era um participante, que estaria contribuindo com os verdadeiros agentes (reafirmados em outros discursos) - o Estado e o empresariado.
Aureliano Chaves levantava outras temáticas para falar do trabalhador, ou seja em suas palavras:

"É por isso que, elegendo o entendimento como método político, estamos em permanente contato com todas as entidades representativas do capital e do trabalho que, sem perda de sua independência, discutem com o governo os principais problemas que interessam às respectivas categorias e, de resto, ao Estado e ao País. (...) Neste dia, renovamos a nossa confiança em cada trabalhador que, anonimamente, contribui para o desenvolvimento das potencialidades mineiras, certos de que poderemos manter diálogo, cordial e respeitoso, que faz de Minas um exemplo de convivência democrática."

Na fala de Aureliano Chaves, o Estado aparecia como o interlocutor justo das classes sociais. Ele defendia ainda o entendimento como método político para o capitalismo, caracterizando, implicitamente, o tipo de trabalhador (cordial) que, na sua visão, interessava para a sociedade. O termo entendimento era associado ainda à imagem de Minas, visando desqualificar qualquer forma de conflito no Estado (afinal, Minas tinha que ser exemplo).

Se durante os governos Rondon Pacheco e Aureliano Chaves, o 1o. de Maio era utilizado com mais uma data cívica para reforçar a imagem do mineiro ordeiro e conservador, a partir do governo Francelino Pereira ocorreria uma mudança nas comemorações do Dia do Trabalho. O governador mineiro ainda tentou defender a imagem do trabalhador associada a termos como compreensivo, pacífico e solidário. Ou seja, de acordo com o seu discurso:

"(...) o Primeiro de Maio não é a festa de uma classe, mas de todo o povo, que, com seu sacrifício e patriotismo vem construindo a riqueza desta Nação. Muitas vezes se tentou fazer do Primeiro de Maio um dia de luta, de conflito e desunião. Muitas vezes ele foi utilizado para a enganadora retórica dos demagogos. Mas o nosso povo repudiou a violência e desmistificou as falsas utopias, preferindo o caminho seguro e gradual da construção pacífica e solidária."

Portanto, havia uma preocupação, no discurso de Francelino Pereira, em mostrar o Dia do Trabalho como um momento de patriotismo. Porém, após as greves de 78 e 79, não seria mais possível manter esta atitude. Depois destas mobilizações, o 1o. de Maio voltou a representar um momento de manifestação dos próprios trabalhadores, o que causou apreensão nos meios conservadores, como ficou claro no editorial do jornal Diário da Tarde de 2 de Maio de 1980:

"AS COMEMORAÇÕES do 1º de maio, com o trabalhador voltando às ruas para comícios e passeatas, as greves que pipocavam por todo o País, os movimentos reivindicatórios que se desencadeiam sobre ameaças de paralisações, merecem algumas observações, antes que a euforia pelo princípio de abertura política possa trazer conseqüências mais sérias.
ENTRETANTO, é preciso que as minutas de contrato coletivo ou de acordos salariais contenham reivindicações perfeitamente defensáveis. Não se pode jogar com o futuro de milhares de trabalhadores e de suas famílias aprovando a toque de caixa, ao sabor da emocionalidade das assembléias, reivindicações que poderão resultar em greves de curta ou de longa duração, apenas pelo simples desejo de fazer greves.
UM DITADO muito certo: não se conquista o céu e a terra de uma vez. Não se pode conseguir de uma vez a reparação de erros de 15 ou mais anos. Em suma, mesmo em reivindicações justas, é preciso usar o bom senso. Às vezes, transgredir não significa derrota, conciliar não se traduz por renúncia às posições. Mesmo porque em greves sucessivas, em reivindicações de difícil atendimento pode-se frustrar uma classe, pode-se por em risco uma sociedade. Pode-se levar ao desemprego, ao caos social."

O editorial do Diário da Tarde reconhecia que teria ocorrido uma transformação na comemoração do 1 º de Maio, mais do que isso, ela simbolizaria um sinal de mudança no próprio país, afinal, o trabalhador estava voltando às ruas para comícios, passeatas e greves. Havia até um reconhecimento de que teria ocorrido injustiças durante o regime militar (não se pode conseguir de uma vez a reparação de erros de 15 ou mais anos), mas o essencial do editorial era mostrar as mobilizações dos trabalhadores como algo perigoso e irracional, por isso o jornal utilizava expressões como emocionalidade das assembléias e caos social. De fato, o que ficava implícito neste tipo de discurso era uma temática importante para o debate político em Minas Gerais: o anticomunismo. Para discutir esta problemática é necessário lembrar um pouco a herança udenista (que era a linha política hegemônica entre as lideranças da década de 70). De acordo com Maria Victoria M. Benevides:

"A lógica do golpismo se introduziu na UDN como um vírus alastrante. O anticomunismo, presente nas denúncias constantes de ‘subversão’, revela, também, a patologia de antiga tradição aliada à penúria ideológica: trata-se do obscurantismo oportunista mas também do invencível temor de ‘erupção social’ pela ascensão política dos setores populares."

Apesar de ter sido fundamental no golpe de 64, nos anos 70 o anticomunismo perdeu um pouco a sua força. Ele era lembrado algumas vezes pelos políticos - o governador Aureliano Chaves achava que o país precisava "manter-se alerta contra a ameaça comunista" - e pelos jornais, em especial o Jornal de Minas:

"Como se vê, as oposições brasileiras, talvez por comodidade ou por incapacidade de criar programas originais para oferecer ao povo, como
alternativas válidas no quadro de uma democracia autêntica, estão aceitando, passivamente, as regras do jogo impostas pelo comunismo internacional. Mais uma vez os comunistas, mercê de uma férrea disciplina ideológica, respaldado no apoio de pseudoliberais, souberam explorar a indefinição ideológica dos partidos de oposição, que se autodefinem como democráticos, para lhes impor as questões políticas de seu interesse - cerne dos programas de todos os partidos oposicionistas - o que os torna rigorosamente iguais, diferenciando, apenas pelas siglas."

O jornalista que assinava a coluna Sem Reserva não deixava dúvidas quanto a linha editorial do jornal:

"JORNAL DE MINAS faz questão de declarar, também, que vai continuar seus ataques e denúncias contra os agentes da Grande Heresia ou Grande Utopia, sobretudo contra os que se ocultam atrás da Cruz de Cristo, ao mesmo tempo em que vão tentando metamorfoseá-la doutrinariamente, aos poucos, para convertê-la, afinal na Cruz da Foice e do Martelo."

A retórica do Jornal de Minas alertava contra o perigo representado pelos agentes da Grande Heresia, que poderiam se ocultar até mesmo entre os religiosos. Referia-se ainda às oposições brasileiras, que estavam sendo usadas pelos comunistas Este tipo de discurso era sempre utilizado; antes do Jornal de Minas, o deputado José Bonifácio já afirmava que iria fazer "investigações para provar até onde a oposição está fundamentada no Partido Comunista". Por último, outro ponto importante era a crítica ao processo de abertura e à própria democracia, pois a ação dos comunistas teria o apoio de pseudoliberais. No entanto, críticas desta natureza não representavam o contexto político da época. Desejar o confronto ideológico - nos moldes do que havia ocorrido em 1964 - não fazia mais sentido naquele momento. O que predominava (sobretudo em 1982) era o processo de redemocratização e a luta pelo poder através das eleições (como no caso dos governadores) voltava a ser uma realidade no debate político brasileiro.
Neste contexto, as próprias solenidades em comemoração das datas cívicas foram também perdendo a sua força ou assumindo outro sentido. Isso, porém, não diminuía a importância destes eventos enquanto representações significativas que visavam legitimar um modelo político no país.


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